Para o educador Mario Sergio Cortella, as cotas não resolvem a questão social dos afrodescendentes no País, mas abrem espaço para fazê-los aparecer

O professor Mario Sergio Cortella passou intimamente pelos dois lados da polêmica criada pelo sistema de cotas para negros e para estudantes da escola pública, adotado pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro e da Bahia, no último vestibular. Há dois anos, ele se dizia contra. Agora, depois de avaliar experiências internacionais, considera que não se pode baixar um decreto suspendendo a realidade até arrumarmos vagas para todo mundo
na universidade e que essa é uma boa forma de colocar em discussão
a dívida que temos com a comunidade negra. “Vi que, embora o sistema não seja suficiente, é uma medida necessária, porque enseja a formação de grupos afrodescendentes dentro da sociedade”, diz ele. Professor
de pós-graduação em educação na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, autor de vários livros e apresentador do programa Modernidade, da Rede SescSenac, transmitido pela Net, esse educador paranaense de 49 anos adicionou à sua experiência uma passagem pelo governo paulistano. Foi secretário municipal de Educação na gestão
de Luiza Erundina. Por isso, sabe que, por melhor intenção que tenha
o governo Lula, a situação social e educacional no Brasil não mudará
de um dia para o outro.

Para ele, um descendente indo-europeu como se diz, o Brasil tem sim escondido em sua teia social um racismo que só não aparece porque o negro não disputa de fato o espaço do branco. “Em nosso país, a convivência entre negros e brancos existe, mas há a suposição de submissão dos negros. Se é subalterno, não disputa espaço. A eficácia das cotas aparece aí”, defende. Entre os milhares de livros de seu apartamento em São Paulo, ele detalhou seus argumentos:

ISTOÉ – Há dois anos, em entrevista a ISTOÉ, o sr. se dizia contra as cotas para pobres ou negros nas universidades. Hoje, o sr. pensa diferente, o que mudou?
Mario Sergio Cortella

Na época, disse que era a favor de cotas no mercado de trabalho porque isso melhoraria o ingresso da população pobre, que em 70% coincide com a população negra. Não era a favor das cotas na universidade por achar que o vestibular não é discriminatório. Mas passei a estudar o tema. Vi que, embora o sistema não seja suficiente, é uma medida necessária, porque enseja a formação de grupos afrodescendentes dentro da sociedade. Nos Estados Unidos, o objetivo das políticas afirmativas de que falava John Kennedy em 1963 era combater o apartheid. Nós não temos um apartheid formal porque o negro nunca disputou de fato o espaço do branco no mercado de trabalho, nos postos de comando. Uma pesquisa feita pela Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais, mostra que 92% dos presidentes das 50 maiores empresas brasileiras são brancos. Temos uma presença diminuta de negros nas elites econômicas, sociais e políticas.

ISTOÉ – O que se diz no Brasil é que não há racismo.
Mario Sergio Cortella

Nosso racismo só vem à tona em momentos em que a negritude ameaça o espaço do indo-europeu. Nos Estados Unidos, as cotas serviram para obrigar a convivência entre brancos e negros. No Brasil, essa convivência existe, mas há a suposição de submissão dos negros. Nós somos apenas a quinta geração depois da abolição da escravatura. Os bisavós de muitos de nós vivenciaram a escravatura, o que significa que existe um certo costume de imaginar os negros em funções subalternas. Se é subalterno, não disputa espaço. A eficácia das cotas aparece aí. Sem essas políticas, haveria nos Estados Unidos um secretário de Estado como Colin Powell? Nós temos ministras negras, mas isso se deu pela indicação do atual governo. Pertenci a um governo dirigido por uma mulher da Paraíba (Luiza Erundina), que, além de nordestina, era de estatura baixa e solteira. Ela dizia que só faltava ser negra, porque do restante já a “acusavam”. Quando queriam ofendê-la, falavam de sua origem social.

ISTOÉ – Não é mais fácil as pessoas aceitarem que existe uma discriminação social, com a pobreza, e não racial, com a cor da pele?
Mario Sergio Cortella

O negro é invisível. A discriminação, social e a racial, aparece quando ele perde essa invisibilidade. Gostaria de ter a convicção de que, se nós tivéssemos uma igualdade econômica, anularíamos qualquer tipo de discriminação racial. O mais desagregador não é olhar o negro como um diferente, é olhar o negro como um menor, porque diferente ele é.

ISTOÉ – Colocar o assunto em discussão seria então o mais importante?
Mario Sergio Cortella

As cotas têm três grandes importâncias. Primeiro, fomentam
a discussão sobre a cidadania coletiva; segundo, qualificam as políticas afirmativas e refinam os critérios para implantá-las. Em terceiro lugar, obrigam o debate sobre as vagas nas universidade públicas.

ISTOÉ – Não teríamos que fazer o mesmo para os índios?
Mario Sergio Cortella

Eles também são minoria política, mas a posição do índio
na sociedade brasileira, embora vitimado na nossa história, é diferente
da do negro. Temos dezenas de estruturas de legislação de proteção
às comunidades indígenas, o que não aconteceu aos negros, que foram incorporados para serem explorados. No século XX, especialmente, buscou-se de forma humanitária proteger os índios, sem explorá-los.

ISTOÉ – Se houvesse mais vagas, a política de cotas não existiria?
Mario Sergio Cortella

Se o número de vagas fosse adequado ao número de candidatos, a pergunta seria como se estruturar o acesso ao ensino médio e depois à universidade. Não podemos baixar um decreto suspendendo a realidade até arrumarmos todas as vagas. Enquanto isso não acontece, são necessárias políticas que não vitimem os já excluídos.

ISTOÉ – Mas não são os pobres, brancos e negros os excluídos?
Mario Sergio Cortella

O pobre é excluído, mas o pobre negro é diferente. Ele tem mais dificuldades. Mesmo entre pobres, há negros com escolaridade, salários e condições de vidas inferiores. Na corrida em direção aos postos na comunidade científica, na gestão de políticas e na concepção de estruturas de organização da sociedade, o negro tem um agravante à sua pobreza, que é a cor da pele. As cotas servem para reparar, em parte, injustiças históricas.

ISTOÉ – O ministro da Educação, Cristovam Buarque, apesar de não ser contra as cotas, disse que elas não são solução para o negro pobre, porque ele não chega nem ao final do ensino fundamental.
Mario Sergio Cortella

A noção de pobreza no Brasil é um pouco mais funda do que se deseja. Os miseráveis são muitos. Os pobres que chegam à universidade são de fato poucos porque não conseguem entrar numa pública ou porque não podem pagar uma faculdade privada. Ninguém que seja inteligente nesse debate disse que as cotas resolvem a questão. Elas minimizam a discriminação social, que advém da herança escravocrata, e a racial. Agrega-se a isso, no campo da educação, um outro agravante: crianças negras têm maior dificuldade na escola.

ISTOÉ – Em que sentido isso acontece?
Mario Sergio Cortella

A estrutura escolar, o material didático e os professores, em geral, não estão adequados à multiculturalidade. A criança brasileira média olha em volta e não se reconhece nos livros, nos heróis televisivos ou nas revistas em quadrinhos. Exemplo, livro de ciências, quinta série: há o desenho do corpo humano mostrando um sujeito loiro, de olhos azuis, um sueco. Não há identidade. Isso provoca a depauperação da auto-estima e da capacidade de produção.

ISTOÉ – Como de fato se pode resolver esse prejuízo histórico dos negros?
Mario Sergio Cortella

A questão racial só se resolve quando se consegue incluir nas elites científicas, sociais e políticas pessoas que possam representar a visão do excluído. Exemplo: quando Heraldo Pereira, da Globo, foi apresentar o Jornal Nacional, não havia ponto eletrônico (aparelho que se usa no ouvido para comunicação entre a produção e o apresentador) para a pele dele. Só tem para pele “normal”, ou seja, a branca. Há quanto tempo se ouve: use o curativo tal porque ele é cor-da-pele. Cor da pele de quem? Essa mescla de situações consolida dentro das pessoas um nó. O que pode começar a desmanchá-lo é o sistema de cotas. Precisamos de jornalistas, médicos e diretores de banco negros. Encontrei pela primeira vez, este ano, um negro como diretor de banco do mais alto escalão. Numa reunião, ele era um entre 300.

ISTOÉ – E as ações judiciais que estão sendo impetradas. O sr. não acha que uma pessoa que se preparou e conseguiu uma pontuação alta tem o direito de brigar pela vaga?
Mario Sergio Cortella

As ações são reflexo da falta de vagas. Tal como aconteceu em 1968, quando houve um movimento dos excedentes do nosso país que levou a ditadura militar a mudar o vestibular de seletivo (só entrava quem conseguia determinada nota) para classificatório (os alunos entram por ordem de classificação).

ISTOÉ – Essa situação não pode exacerbar o racismo?
Mario Sergio Cortella

Quem não é racista não vai se tornar por causa da disputa. Os alunos estão defendendo um interesse com o direito que têm de fazê-lo. Não é racismo. De qualquer forma, é preciso observar que, quando se discute dar vagas para quem vem da rede pública, não há resistência nem ações, como quando se quer dar para a comunidade negra.

ISTOÉ – Mas há grande disparidade entre as notas de corte dos classificados no sistema de cotas e no vestibular geral da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Isso não gera problemas em classe?
Mario Sergio Cortella

Cabe à universidade lidar com isso. Esse diferencial existiu sempre, só que não vinha à tona. As classes são formadas com os primeiros da lista e os que estão na sétima ou oitava listas. A temática das cotas desnuda uma série de dissimulações que existe em nossa estrutura de ensino superior. Depois de algumas pesquisas, a Unicamp e a PUC-SP chegaram à conclusão de que os de melhor nota no vestibular não são necessariamente os de melhor desempenho universitário. Quase sempre os mais competentes foram os que tiveram melhores redações.

ISTOÉ – Outra questão levantada é a autodeclaração de descendência. Como saber se ela condiz com a verdade?
Mario Sergio Cortella

Não há critérios a priori. É como o Programa Fome Zero, é preciso ir estabelecendo-os na medida em que se estrutura. Tudo que é novo, que cria o inédito, tem embaraços na sua instalação. O refinamento dos critérios se dá dentro do processo. Será que 100% dos que se declararam negros não o são? As experiências feitas na Bahia e no Rio mostram que não.

ISTOÉ – Não seria melhor que a universidade usasse como critério a renda das pessoas?
Mario Sergio Cortella

A questão da renda isoladamente também não resolve. Poderia se selecionar alguém sem nota para entrar na universidade. Teríamos que estabelecer cotas para pobres, que é outra discussão, conectada a essa. Misturaram-se as conversas, mas elas não têm que estar misturadas. A democratização do acesso e da permanência tem que ser pensada sempre, independentemente da temática racial.

ISTOÉ – O Brasil destina 5% do PIB à educação. Deveria destinar mais? Nós temos verbas para isso?
Mario Sergio Cortella

Temos condições e base econômica para vir a ter verbas para o País se alterarmos o modelo. O governo que assumiu não teve tempo, ainda, e acho que não terá antes de 12 meses, de alterar a rota porque não está refundando o País, está buscando alterar o percurso. Nesse sentido, não temos verbas hoje. Gerá-las significa não só o aumento do porcentual público na área, como uma reforma tributária que traga mais recursos para o setor público. O ensino superior no Brasil não é a nossa maior questão educacional. Ainda temos milhões de analfabetos totais ou funcionais. Ainda temos crianças que têm acesso, mas não ficam na escola. É necessário um sistema de qualidade social de ensino, que só existe quando há quantidade total atendida. Enquanto não se tem quantidade total, se tem apenas privilégios.

ISTOÉ – O sr. acha que o presidente Lula terá tempo para isso?
Mario Sergio Cortella

Tenho uma expectativa extremamente positiva em relação a esse governo, mas não sou tolo de supor que ele faria essa alteração imediatamente. Para imaginar isso eu teria que negar a minha experiência de governo. São Paulo é o terceiro orçamento do País e a Secretaria da Educação que ajudei a dirigir era o primeiro orçamento da cidade. Ainda assim, no primeiro ano tivemos dificuldades; no segundo, nos estruturamos um pouco; e no terceiro ano conseguimos uma decolagem. Mas emperramos em algumas coisas. No último ano de gestão Luiza Erundina, em 1992, o Executivo entrou com um projeto na Câmara de IPTU progressivo. Com esse recurso seria possível, no ano seguinte, zerar o déficit de crianças fora da escola no ensino fundamental. Um grupo da elite entrou com um recurso contra, travou o processo e nós não tivemos as escolas, como até hoje não temos. Nessa questão das cotas raciais há pessoas que querem também emperrar o processo desqualificando o debate, e ele é muito sério para ser desqualificado.