Às vésperas de lançar um novo livro, Lygia Fagundes Telles questiona o tratamento dado aos intelectuais no Brasil,onde para ela viver é luxo

A escritora Lygia Fagundes Telles nunca escreveu uma autobiografia nem cogita fazê-lo. “Eu inventaria muito”, diz. Na simplicidade da resposta fugidia está o cerne da literatura desta paulistana eternamente bonita: o entrelaçamento irreversível entre realidade e ficção. Este mundo insondável começa a ser desvendado com o lançamento de Durante aquele estranho chá – perdidos e achados (Rocco, 210 págs., R$ 25), no qual relata momentos e encontros importantes de sua vida. Alguns deles –com Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, Simone de Beauvoir, Clarice Lispector e muitos outros – estão na obra que a editora lança nesta semana e que será uma das estrelas da 17ª Bienal do Livro, em São Paulo. Trata-se de uma coletânea de artigos desconhecidos do grande público e garimpados pelo professor universitário e jornalista Suênio Campos de Lucena em extintos jornais do interior, publicações avulsas de faculdades, reproduções de palestras e conferências. O trabalho joga luz no chamado mistério lygiano, da infância atormentada e da
juventude flamante.

Especialista em cavoucar a solidão, a loucura, a paixão e a alma em belíssimos contos e romances, Lygia se mostra perplexa diante da realidade brasileira. E questiona por que Kleber de Paula, vencedor do programa global Big brother Brasil, ganha um alto cachê para aparecer em festas enquanto intelectuais como ela, com produção cultural chancelada em vários países, recebem um ramo de flores para desfilar o saber em eventos? Lygia acha que Bambam “merece ganhar até R$ 50 mil” por emprestar seu físico e simpatia à fantasia feminina, mas não entende por que “o intelectual nunca recebe o equivalente ao que tem feito”. Lygia também se assume uma escritora preocupada com o cotidiano. “Meu texto está engajado nessa realidade de desigualdade e injustiça total. Quando o Brasil tiver mais creches e escolas, terá menos hospitais e menos cadeias.”

Nascida em 19 de abril de 1923, a escritora também se notabiliza pela beleza que resiste aos anos. Mas seus orgulhos são outros, como ser mãe do cineasta Goffredo Telles e ter se casado com o crítico de cinema e fundador da Cinemateca Brasileira Paulo Emílio Salles Gomes, já falecido. A bela moça de boina, que fazia sucesso na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e na Escola Superior de Educação Física, na capital paulista, é hoje o expoente maior da literatura brasileira. E ainda exibe muita galhardia vestindo o fardão da Academia Brasileira de Letras. Lygia Fagundes Telles deu a seguinte entrevista
a ISTOÉ.

ISTOÉ – A sra. nunca escreveu uma autobiografia. Pretende fazê-la?
Telles

Não, porque eu inventaria muito. O livro de memória também tem uma coisa, vou ser franca, eu disfarço, mas vou dizer de forma clara: não gosto de expor a minha vida, as coisas que aconteceram comigo. Gosto é de misturar essas coisas com a invenção. No fundo, tenho um certo pudor de me despir, como fazem em geral as autobiografias que se despem de forma até bastante elogiosa. Reparou que os biografados são deslumbrantes, muito importantes? Ao contrário, me vejo menor. Tenho grande receio de fazer papel miserável, no fundo é isso. Eu conversava com Carlos Drummond de Andrade sobre isso um dia e concordamos. Há um certo pudor de contar um fato da vida botando importância nesse fato e você aparecendo com uma coroa na cabeça.

ISTOÉ – Nesta vida literária, a sra. recebe muitas homenagens, faz muitas palestras?
Telles

Não gosto de dizer isso, mas é com muita tristeza no coração que admito que comecei a fazer conferências, dar depoimentos para ganhar dinheiro. Estou contando isso com toda a franqueza do meu coração. Não era para mostrar meu blazer que fiz muito isso, mas para ganhar dinheiro. Agora parei. Sou aposentada como procuradora de Autarquia do Estado de São Paulo. Entrei lá justamente para me resguardar economicamente. Quando descobri, na minha cabeça vidente – o escritor é vidente –, que eu não ia conseguir viver de literatura num país como este, tentei me proteger. Fiquei lá 30 anos assinando ponto sem vocação para dar pareceres jurídicos. Saí aposentada. Nosso então governador, Mário Covas, baixou um decreto tirando a verba honorária dos procuradores de autarquia, uns 300 ou 400 velhotes e velhotas, eu no meio. Passei a ganhar menos da metade do que eu ganhava, uns
R$ 6 mil. Veja que nem era essa pensão deslumbrante de governador,
de R$ 9.600. 

ISTOÉ – Quando um artista famoso de televisão é chamado para alguma festa, sempre ganha um cachê. Isso também acontece com escritores?
Telles

O que eu fiz de depoimento ganhando zero! O carro vinha aqui, me pegava e eu ficava nhac, nhac, nhac, falando até perder a voz, e voltava sem ganhar nada. Ganhava sim, um ramo de flores que muitas vezes chegava aqui em casa murcho. Vamos falar com franqueza. Como se chama esse moço grandão que acabou de ganhar um prêmio? Kleber, isso! Dizem que ele está cobrando R$ 8 mil para ir numa festa exibir os músculos e o sorriso. As mulheres fogosas devem estar loucas por ele, está certo que ganhe R$ 8 mil. As meninas ficam excitadas, louquinhas, as mães das meninas também ficam excitadas, ele merece ganhar até R$ 50 mil, está certo, tudo bem. Injusto é que o intelectual no Brasil não receba nunca o equivalente ao que tem feito.

ISTOÉ – Sempre foi assim?
Telles

Sim, eu quis me formar em direito, entrei para o funcionalismo público, parece que eu estava adivinhando. Escreve isso aí: a vida no Brasil virou artigo de luxo. Eu não vivo com luxo, não tenho secretária, não tenho carro. Vivo na luta.

ISTOÉ – Há preconceito no universo intelectual?
Telles

Parece que está diminuindo, passando o tempo em que os críticos literários achavam que a mulher escritora deveria dialogar com as flores, com as borboletas e com Deus. Resta um resquício de preconceito. A Clarice Lispector, que era uma grande escritora, sentia isso. Ela morreu pobre. Quando era viva, tinha uma coluna na Fatos & Fotos para ganhar dinheiro. Não tinha nenhum interesse em ser jornalista. Isso mostra que estamos no começo ainda, mas tenho esperança porque um escritor sem esperança é uma contradição.

ISTOÉ – Na sua opinião, o episódio Roseana Sarney respinga em movimentos de valorização da mulher?
Telles

Não, absolutamente. Vejo como um caso especial. Não vamos entrar no mérito da questão, não nos compete nem interessa no momento. Mas que foi bonito esse impulso de pessoas atrás de uma mulher, abrindo um caminho e esperança, isso foi. Acreditaram na bandeira dela. Até o momento em que houve outra história e tudo não resistiu ao escândalo.

ISTOÉ – Já escolheu em quem vai votar para presidente?
Telles

Quero esperar um pouco, ser cuidadosa para não fazer besteira. Já fiz muitas. Por enquanto estou mais ligada ao horror do Oriente Médio, à guerra. A política interna passou para o segundo plano. Israelenses e palestinos são primos, olha o horror entre eles.

ISTOÉ – No Brasil morre tanta gente ou mais numa guerra interna, silenciosa…
Telles

Quando era estudante de direito, uma menina de boina, eu já pregava que o dia em que o Brasil tiver mais creches e escolas terá menos hospitais e menos cadeias. Reafirmo isso. Eu me impressiono com o Oriente Médio, mas me impressiono mais com a nossa miséria e o nosso analfabetismo. É terrível. O analfabetismo e a miséria são dois monstrinhos caminhando de mãos dadas. Sou uma escritora engajada porque meu texto está dentro dessa realidade brasileira de desigualdade e injustiça total.

ISTOÉ – É possível fazer isso sem perder o humor e a ironia?
Telles

Ah, o riso é muito importante, acho que é por isso que meu texto agrada, né? De repente o riso, a vontade da graça, do sol, que é
o humor. Gente sem humor é muito chata. Velho mal-humorado
é um horror.

ISTOÉ – Ao revisar sua obra, encontrou muitas modificações?
Telles

À medida que o tempo vai passando, os livros do escritor vão passando também por revisores e, às vezes, eles os corrigem. Aí eu caio em crise de desespero. De vez em quando eles são dramáticos, muito apurados e corrigem os textos que não podem ser corrigidos. Exemplo: tenho um conto chamado Pomba enamorada ou uma história de amor, que fala sobre uma pequena ajudante de cabeleireiro. Uma menina simplíssima tem de falar modestamente. O tal do copy às vezes cisma em botar os pronomes certos. Nas minhas próprias revisões, não toquei na natureza mais profunda desses textos. O que foi escrito em 1982 é o texto de 1982, tem de haver certa fidelidade. Esse trabalho que fiz há três anos na Rocco (a revisão de toda a obra) foi importante porque encontrei alguns revisores que mudaram o foco narrador. Foi exaustivo, mas fico contente de olhar meus livros na estante. Estão todos como eu queria que ficassem, dentro das minhas erupções, escolhas, lutas.

ISTOÉ – A sra. diz que não gosta de se expor, mas o livro Durante aquele estranho chá tem muitos traços autobiográficos.
Telles

Meu pavor é ficar me jactando, me exibindo. Olha, eu nunca dançaria em cima de uma mesa, viu? Mesmo na juventude, quando era bonitinha, jamais dançaria sobre a mesa. Pelo contrário, eu me escondo. Mas de fato aparece alguma coisa de mim, principalmente da infância, que não foi gloriosa, com dinheiro. Era difícil. Não me ponho como criança feliz, não fui. Era uma criança atormentada, medrosa, assustada, se escondendo. As pessoas se iludem muito comigo porque, não sei, às vezes pensam que a gente é uma coisa e não é isso. A minha infância foi muito dura, a adolescência também, morei em pensões, meu pai perdeu tudo, era um jogador. Falo sem autopiedade, sem exibição, conto porque pode interessar ao leitor.

 

 

ISTOÉ – A passagem do tempo a assusta?
Telles

Não me importam os silicones da vida, as plásticas. A proximidade da morte é que é um mistério, é que dá medo. Mas estou convicta de que a alma é imortal e esse medo está desaparecendo em mim. A proximidade da morte dá mais medo num país como este, onde viver é artigo de luxo. As pessoas têm muito medo da velhice. Velhos de 70, 90 anos estão casando com meninas de 12 anos e meio. As de 15 já estão velhas. Atrás de tudo, a vontade de vencer a velhice. Hoje há também muitas mulheres mais ousadas buscando prazeres nos jovens como revide.

ISTOÉ – Já fez plástica?
Telles

 Estética, não. Uma vez tive de cortar a pálpebra superior porque estava me dando problema. Mas felizmente minha família é de mulher com pele boa, eu herdei isso. Vivi uma situação engraçada com a Simone de Beauvoir, quando estive com ela em Paris. De repente ela pôs a mão na minha mão e perguntou: “Lygia, você está com medo de envelhecer?” Eu parei um pouco para juntar as palavras porque meu francês é fraco e a demora em organizar uma resposta a levou a concluir: “Então é porque você está com medo.” Mas, olha, para não envelhecer só há um jeito, que é morrer jovem. Isso eu nunca quis nem quero. Então,
vamos envelhecer.

ISTOÉ – Simone de Beauvoir era bonita?
Telles

Tinha um certo fascínio, olhar intenso, severo. Levava tudo muito a sério. Não, não era uma mulher bonita. Aceitou com toda a lealdade a realidade, a própria velhice. Jamais faria plástica. Envelheceu como tinha de envelhecer, sem amargor. Ela transformava a própria velhice num texto, era uma criadora. É uma forma de transformar as coisas ruins em coisas boas. Eu procuro transformar as coisas erradas em outras que podem ser até engraçadas na literatura.

ISTOÉ – O livro revela que seu marido a chamava de Kuko. Por quê?
Telles

Paulo Emílio dizia que eu era o cuco do relógio da avó dele, inglesa. O cuco desse relógio travava na portinha quando deveria anunciar a hora. Ele achava que eu não cumpria os horários direito e me chamava de Kuko, com K, como brincava. Aceitei. Paulo era uma pessoa adorável e gostava muito dos apelidos. Até conhecê-lo, eu era muito bicho de sombra, escondida, invisível, me disfarçava como defesa. Ele fez nascer e desabrochar virtudes, qualidades que estavam embutidas. Eram poucas, mas vieram à tona com a ajuda dele. Foi muito bom para mim e para o meu ofício.

ISTOÉ – A sra. ainda é fumante?
Telles

Sou. Eu minto para meu médico. É a única mentira que cometo. Sabe por que amei minha última viagem a Paris? Porque lá pode fumar. Entendi o liberté, igualité, fraternité. Maravilha, o parisiense fuma e ninguém tem nada com isso.