O todo-poderoso FMI não é mais todo-poderoso como se imagina. Ficou velho precocemente, rabugento, autoritário e tão distante dos princípios de sua criação, em dezembro de 1945, como está distante a Argentina, sua vítima da vez, do fim da pior crise econômica de sua história. A mais recente bordoada na imagem e eficácia do Fundo foi provocada pelo golpe na Venezuela. Na ânsia de apoiar um governo de direita, o Fundo se precipitou ao dar guarida a Pedro Carmona, líder do golpe contra Hugo Chávez, o presidente que voltaria ao cargo 48 horas depois, provocando o delírio da população de baixa renda. O FMI foi o único organismo internacional a reconhecer o governo golpista. “Estamos prontos a ajudar a nova administração de qualquer maneira que ache cabível”, disse em tom solene Thomas Dawson, porta-voz e diretor do departamento de relações externas da instituição.

Não são os manifestantes argentinos que invadiram o Hotel Sheraton, em Buenos Aires, onde se hospedou Anoop Singh, chefe da missão do FMI, que questionam os poderes, a ideologia e as receitas do FMI. O economista americano Joseph E. Stiglitz, Prêmio Nobel de 2001, economista-chefe do Banco Mundial até 2000, presidente do conselho de economistas do governo Bill Clinton, acaba de lançar um livro que abastece com teoria as faixas de protesto contra o FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras instituições “fanáticas pelo livre mercado”.

O livro, publicado pela editora francesa Fayard, não se chama A grande desilusão por um repente poético. Stiglitz é um dissidente dessas instituições que conheceu na intimidade às quais chama de “Dr. Mabuse da globalização”. Por que Dr. Mabuse? Porque Dr. Mabuse, personagem-título de um filme clássico de Fritz Lang, de 1922, é um especulador sem escrúpulos. Ele escreve: “A guerra tecnológica moderna é concebida para suprimir todo contato físico: as bombas são detonadas a 15 mil metros de altitude para que os pilotos não vejam o que estão fazendo. A gestão moderna da economia é parecida. Do alto de um hotel de luxo impomos, sem piedade, políticas que nos fariam pensar duas vezes se conhecêssemos os seres humanos que terão suas vidas devastadas.” Stiglitz diz que o FMI, criado para assegurar a estabilidade monetária no mundo econômico, se tornou um campeão fanático da hegemonia do mercado. “Keynes (John Maynard Keynes, 1883-1946, principal arquiteto do Fundo) reviraria no túmulo se soubesse no que se transformou
sua criança.”

A crítica mais recorrente em relação ao FMI é de que a instituição impõe uma receita única – reformas radicais e profundas – para países diferentes, sem estudos prévios de sua repercussão na população mais carente. “Há uma ditadura do Fundo”, diz o economista Pierre Salama, uma das estrelas da esquerda francesa. “Eles aplicam um protocolo standard a todos os países”, escreve Stiglitz. A Argentina, por exemplo, saiu da hiperinflação nos anos 80 para um processo de ortodoxia econômica na década de 90 com o presidente Menem. Teve rápido crescimento econômico por quatro anos, durante o período de paridade do peso com o dólar. Nessa época, a Argentina, “darling do mercado financeiro”, recebia aplausos do Fundo. Deu tudo errado.

Brasil descolou – Os aplausos agora são para o Brasil. Segundo o FMI, a economia brasileira deverá crescer 2,5% em vez de 0,5% em 2002. Na habitual conferência de imprensa que antecede a Reunião de Primavera do FMI e Banco Mundial, que acontece neste fim de semana, em Washington, o diretor-gerente da instituição, Horst Köhler, elogiou as “bases econômicas e políticas que propiciaram o descolamento do Brasil do contágio financeiro da Argentina”.

Para o vizinho em crise, porém, péssimas notícias, a começar pela prescrição do que Köhler chama de um remédio amargo. “O caminho correto certamente não será um caminho fácil para o povo”, disse Köhler. “Haverá mais demissões”, ele admitiu. E mais empobrecimento da população. “O país tem que se ajustar a uma realidade de menos prosperidade, menos riqueza.”

As declarações do diretor-gerente do Fundo jogaram o presidente Eduardo Duhalde nas cordas e mais lenha na fogueira da aversão da população ao Fundo. Quase 70% dos argentinos rejeitam o acordo com o FMI. Eles querem que o país siga um rumo próprio, segundo pesquisa feita pela empresa Graciela Römer y Asociados. Eles estão certos, de acordo com a economista Mercedes Marcó del Pont, que deixou a assessoria do governo Duhalde há menos de três semanas por discordar da subserviência do presidente à instituição. Para ela, o FMI não é a salvação, mas a garantia de outro fracasso. “Se seguirmos o caminho traçado por eles, em poucos meses vamos enfrentar uma recessão mais grave, dificuldades para cumprir as metas fiscais e a insegurança de que a qualquer momento eles podem romper o acordo”, disse ela.

O FMI – escreveu Michael Mussa, associado sênior do Institute for International Economics e ex-funcionário graduado do Fundo – cometeu dois grandes erros na Argentina: falhou ao não alertar as autoridades a ter responsabilidade fiscal, especialmente durante a crise mexicana, a partir de 1995, e falhou ao dar apoio financeiro ao país em 2001, num momento em que a crise e o calote já eram claros. “Em 2000 e 2001, com o apoio do FMI, o governo tomou medidas desesperadas para segurar a crise, apesar de a comunidade internacional acreditar na inutilidade e na impropriedade das medidas. Os esforços se revelaram catastróficos.” Mussa lembra que, durante a crise do México, o Fundo ajudou a Argentina a manter a conversibilidade. “Se em 97/98 o país tivesse abandonado a conversibilidade, a transição do modelo teria sido mais tranquila.”

Acabar com o FMI não é a saída que apregoam alguns economistas críticos da instituição. Uma instituição desse tipo, e com outros princípios, é necessária. “A questão mais importante é saber por que essas instituições internacionais fracassaram e como torná-las mais eficientes”, diz Stiglitz. O que o FMI precisa é de reformas austeras, exatamente como prescreve. Tem que gastar menos – os gastos da burocracia do Fundo, divulgados pelo jornal argentino Página/12, são estratosféricos, incluindo até a manutenção de uma comissão anti-estresse – e fazer o caminho de volta a seus princípios de quarenta e tantos anos atrás. Se não for pelos pobres, que seja para que Keynes descanse em paz. “Será muito difícil e sofrido para eles”, diz Stiglitz.
Mas, como dizem seus especialistas aos países em apuros financeiros, não há alternativa.