No nervoso mercado financeiro de Quijarro e Porto Suárez, cidades bolivianas a menos de 20 quilômetros de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, funciona a todo vapor uma feira livre de dólar e de outras moedas estrangeiras. Maltrapilhos e de chinelos, adolescentes e mulheres desfilam com bolsas cheias de dólares na frente de agências de turismo e dos bancos. Recrutados por doleiros clandestinos, esses mendigos transformados em laranjas do mercado financeiro tentam negociar as principais moedas do mundo com turistas e investidores estrangeiros.

A exemplo desses laranjas e de outras dezenas de instituições financeiras da avenida Simon Bolívar, em Porto Suárez, o Proden Oportunidad – Fondo Finaciero Privado S.A. – também faz questão de anunciar sua principal atividade com alarde: enviar qualquer quantidade de dinheiro, legal e ilegalmente, para qualquer lugar do mundo. “La manera más rápida de enviar dinero a todo el mundo”, anuncia o letreiro da Proden. Demonstrando interesse em enviar US$ 5 mil para o Líbano, os repórteres de ISTOÉ entram no banco e são atendidos pelo gerente Félix Ramos, que se esforça para provar a veracidade do anúncio. “Não tem burocracia nem controle do governo. Estamos acostumados a mandar dinheiro para o Oriente Médio e para qualquer parte do mundo. O senhor me paga US$ 215 dólares e, por intermédio do Banco Internacional Western Union, o dinheiro chegará lá imediatamente”, afirma Ramos.

Localizada do outro lado da fronteira, em Corumbá, a rua Vereador Edu Rocha não vive a mesma realidade. Considerada o coração financeiro do mercado livre do narcodólar, a Edu Rocha tornou-se o ponto de encontro de cambistas e laranjas. Estabelecimentos comerciais servem de fachadas para casas de câmbio, que funcionam sem a autorização do Banco Central. Na Edu Rocha, a reportagem de ISTOÉ também não encontrou dificuldade para negociar a compra de US$ 200 com o dono do Armazém Pantanal, que se identifica apenas como Paraná. Atuando como intermediário, Paraná revela que trabalha para outros dois cambistas da Edu Rocha: o libanês conhecido pelo nome de Ali, dono da loja Manara, e outro cujo primeiro nome é Carlos, proprietário da Vidros e Borracha Pantanal. “Mas se você precisar de dinheiro graúdo terei que apelar para o libanês Mohamed Mohamed, o atual homem forte do dólar em Corumbá”, revela Paraná.

Cenas como essas demonstram que os olhos atentos de agentes da CIA (o serviço secreto dos EUA) e da Polícia Federal, que investigam a conexão do narcotráfico com o terrorismo internacional, não têm intimidado as instituições financeiras e os cambistas de origem libanesa que atuam na fronteira do Brasil com a Bolívia. As suspeitas da PF começaram a vir à tona no final do ano passado, quando a Unidade de Inteligência Financeira da Bolívia (UIF) detectou remessas ilegais dos bancos da Bolívia para o Oriente Médio e para os EUA que totalizam US$ 280 milhões. O rastreamento da UIF boliviana responsabilizou o libanês naturalizado brasileiro Khaled Nawaf Aragi pelas transações financeiras. Condenado a oito anos de prisão por ter lavado US$ 17 milhões do traficante carioca Fernandinho Beira-Mar e por operar casas de câmbio em Corumbá sem a autorização do BC, Khaled está preso na Penitenciária de Segurança Máxima de Campo Grande. Ele se tornou peça principal de outro inquérito da PF que investiga as operações de lavagem e as supostas ligações do crime organizado com o terrorismo internacional.

Milícias árabes – Além de documentos que comprovam o envio de recursos para o Líbano e para outros países do Oriente Médio, as evidências das ligações de Khaled com o terrorismo são reforçadas pelas fotos de supostos guerrilheiros carregando fuzis AK-47 e outras armas usadas por milícias árabes, anexadas aos autos do processo. As fotos foram apreendidas em 1999 por agentes da Polícia Federal em duas empresas de fachada de Khaled na Edu Rocha – a agência de viagens HWS Rocha Turismo e o Atacado Cuiabá –, onde eram realizadas as operações de câmbio. A PF suspeita que as fotos foram tiradas no sul do Líbano durante o treinamento do Hezbollá. Segundo a assessoria da PF no Mato Grosso do Sul, a Justiça Federal tem dado ao inquérito um tratamento de segurança nacional a ponto de negar o acesso aos autos até dos advogados dos réus. Junto com Khaled foram presos duas dezenas de cambistas e laranjas, a maioria de origem libanesa, que o ajudavam a enviar dinheiro para o Exterior. Dois irmãos de Khaled e outros doleiros conseguiram fugir para o Líbano.

Carregando sacolas cheias de dólar, os laranjas atravessavam a fronteira até os bancos de Quijarro e Porto Suárez, que se encarregavam de executar a evasão. Disposto a apagar os rastros de suas operações, Khaled escolhia a dedo seus laranjas. A PF descobriu, por exemplo, que um deles, Hercílio Rosa, é surdo-mudo de nascença. “Não temos a menor dúvida de que o mesmo esquema da fronteira que está lavando o dinheiro do tráfico e do crime organizado está sendo usado para lavar o dinheiro do terrorismo internacional”, afirma Ramiro Rivas Montealegre, presidente do UIF da Bolívia. De acordo com boletins da CIA distribuídos ao governo boliviano, após o atentado de 11 de setembro nos EUA, muçulmanos fundamentalistas da tríplice fronteira do Brasil com a Argentina e o Paraguai estariam utilizando os bancos de Porto Suárez e Quijarro para enviar dinheiro para o Oriente Médio. Separada apenas por uma rua de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, o município paraguaio de Pedro Juan Caballero também teria se transformado em outra rota importante de remessa de dinheiro para o Exterior.

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Conhecido por ter condenado mais de 200 traficantes, Odilon de Oliveira, juiz federal de Campo Grande (MS), acredita que, apesar dos esforços dos serviços de inteligência financeiros, criados em todo o mundo a partir de 1988 para rastrear o dinheiro do crime organizado, as máfias que operam nas fronteiras do Brasil nunca lavaram tanto.
A tese de Odilon é baseada em documentos do Banco Central sobre as transações irregulares, que colocam em dúvida o real funcionamento do Mercosul. Os levantamentos do BC apontam, por exemplo, que somente uma conta CC-5 (não residentes no Brasil) no Banco de Crédito Nacional (BCN) de Ponta Porã, movimentada pelo “fantasma” Pedro Paulo Velasques, lavou e enviou para o Exterior R$ 548.890.568, o que corresponde à metade do valor do saldo da balança entre o Brasil e o Paraguai no ano 2000, que, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, foi de R$ 1,1 bilhão. De acordo com investigações do Ministério Público de Dourados (MS), há fortes indícios de que o “fantasma” Velasques, inventado por traficantes da região, lavava também o dinheiro desviado da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) pelo empresário Osmar Borges, acusado de envolvimento com o ex-senador Jader Barbalho (PMDB), assim como o dinheiro desviado do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo pelo juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto. De acordo com o BC, somente no BCN foram lavados e enviados irregularmente para o Exterior, em apenas dois anos, R$ 21 bilhões. Esse valor é 13 vezes maior que o das exportações do Brasil para o Uruguai em 2001 (de R$ 1,6 bilhão) ou 24 vezes maior que as exportações para o Paraguai, que, de acordo com dados da Câmara de Comércio Exterior (Cacex), foram de R$ 842 milhões.

Fim do sigilo – “Os paraísos fiscais não estão nas Ilhas Virgens e sim em nossas fronteiras, onde a mesma máfia que lava o dinheiro do narcotráfico lava o dinheiro da corrupção e do terrorismo”, afirma o juiz Odilon. Pelos cálculos do juiz, cerca de US$ 10 milhões são enviados irregularmente para o Exterior pelos bancos das fronteiras do Brasil com o Paraguai e a Bolívia. Para Odilon, nem mesmo a aprovação da lei de lavagem de dinheiro, em 1998, e a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) têm sido suficientes para impedir o crescimento assustador das operações de lavagem na fronteira. O juiz acredita que somente a quebra do sigilo bancário e o acesso do Ministério Público a todas as operações de transferências de crédito conseguirão conter as operações financeiras ilícitas na região. “A lei de lavagem diz que todas as operações devem ser comunicadas ao Banco Central. Só que, quando o BC tem conhecimento da operação, o dinheiro já está longe. Foi o que aconteceu com os R$ 21 bilhões lavados do BCN de Ponta Porã. Os 60 laranjas e fantasmas nunca foram encontrados, e o dinheiro jamais será recuperado,” diz Odilon.

Um dos principais estudiosos do crime organizado, o juiz aposentado Walter Maierovitch, ex-secretário nacional Antidrogas, também coloca em dúvida os resultados práticos obtidos pelas organizações internacionais na luta contra a lavagem de dinheiro. Fundador e presidente de uma organização não-governamental que estuda problemas relacionados ao crime, o Instituto Brasileiro Geovanni Falconi, Maierovitch aponta a rede telemática, a internet dos bancos, como a grande vilã das operações financeiras ilícitas. Operado por meio de agências financeiras especializadas (no Brasil o mercado é controlado pela suíça Swift), o sistema permite transferências financeiras online entre bancos localizados em diferentes partes do mundo. Ao contrário das auditorias do Banco Central e das UIFs que tentam rastrear o dinheiro da corrupção e do crime organizado, a rede telemática é ágil e rápida. Por meio dela, basta um gerente de um banco digitar uma senha e a tecla enter do computador para, em segundos, o dinheiro do crime organizado estar em outra parte do mundo. É essa a mágica que permite a doleiros como Khaled e instituições financeiras bolivianas, como a Proden, que se ofereceu para enviar dinheiro para o Líbano aos repórteres de ISTOÉ, fazer remessas de dinheiro para qualquer parte do mundo.


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