A notícia da contaminação de uma menina de 11 anos pelo vírus da Aids após ter recebido uma transfusão sanguínea, divulgada há duas semanas, trouxe de volta uma discussão que parecia encerrada sobre a qualidade do sangue usado nos procedimentos deste tipo. O fato ocorreu em Ribeirão Preto, São Paulo. A contaminação aconteceu em cirurgia realizada no ano passado para retirar parte do intestino da garota, vítima de paralisia cerebral.

O caso chama a atenção porque é uma exceção à regra. “A Aids transfusional era coisa do passado”, diz Mário Scheffer, da organização não-governamental Pela Vida, de São Paulo. No Brasil, a contaminação pelo HIV via transfusão diminuiu drasticamente desde que foram implantados os testes de sorologia obrigatória, em 1985. Para diminuir o risco, inclusive para outras moléstias infecciosas, também foram adotados critérios mais rígidos na triagem dos doadores e para a realização de transfusões. “Receber sangue é procedimento cada vez mais racional e programado”, assegura Dante Langhi, presidente da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia.

Mas essas barreiras têm as suas falhas. Nenhum exame garante que o sangue seja totalmente puro. Se o teste for feito no período de janela imunológica (fase em que o organismo, apesar de contaminado, ainda não produziu os anticorpos detectados pelos exames), há chance de o sangue ser considerado adequado, apesar de já conter microorganismos nocivos. E os problemas não ocorrem só no Brasil. Na semana passada, por exemplo, os Estados Unidos registraram dois casos de contaminação por HIV via transfusão.

Por aqui, a localização da menina contaminada foi possível depois que o hemocentro descobriu em outubro de 2001 que um de seus doadores regulares estava infectado. Os receptores do sangue doado até então foram identificados (além da criança, um homem recebeu parte do material, mas faleceu sem manifestar a doença). O doador, por sua vez, foi informado do resultado positivo do teste. No centro das atenções, a instituição terá de se explicar à Vigilância Sanitária do Estado e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O hemocentro também é alvo de um processo movido por Ivanilde Nascimento, mãe da criança, e há dois inquéritos abertos pelas promotorias da Infância e da Cidadania locais. “Se ficar confirmado que houve atendimento irregular, levando à contaminação, a criança tem direito a indenização”, diz o promotor Marcelo Goulart.

Além do questionamento em relação à qualidade do sangue, o caso evidenciou outros problemas. Um deles é a falta de uma política de assistência social para as vítimas. A maranhense Ivanilde, 26 anos, por exemplo, passa por maus bocados. “Vim para Ribeirão Preto há quatro anos para tratar minha filha. Ela está internada desde fevereiro. Fiquei sem emprego e vivo de doações da Igreja Batista. Nenhuma autoridade me ajudou. Não tenho dinheiro para cuidar dela”, diz Ivanilde. O hospital informou que a menina está bem e ainda não tem sintomas da infecção.

Outro aspecto que veio à tona é a demora na adoção de novos e mais precisos exames, como o teste de ácido nucléico (NAT). Sua grande vantagem é detectar pedaços de proteínas dos vírus no sangue, o que permite identificar a presença dos agentes antes mesmo de o corpo produzir anticorpos. Desse modo, a janela imunológica cai de 22 para 11 dias no caso da Aids e de 82 para 23 dias para o vírus HCV, que causa a hepatite C. “A técnica é importante e já está sendo usada em alguns bancos de sangue. Aumenta a segurança e seria muito útil se já estivesse implantada em todo o País”, afirma Dante Langhi. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária garante que implantará o NAT na rede pública a partir de outubro. “Em seis meses, o teste será obrigatório em todos os bancos de sangue”, garante Beatriz Mac Dowell, da Agência.