Se os amantes do automobilismo pudessem, com seus próprios carros, dividir as curvas de Interlagos com Ferraris e Williams conduzidas pelos melhores pilotos da Fórmula 1, certamente viveriam momentos inesquecíveis. Mas a possibilidade de um evento desses se realizar é a mesma de o Dick Vigarista vencer uma corrida maluca sem fazer nenhuma trapaça. Aos amantes do iatismo, porém, esses prazeres foram vividos na última semana, no litoral norte de São Paulo. Exatamente às 11h5 do sábado 20, quando de um navio da Marinha foi disparado o tiro de canhão anunciando a largada da 29ª Semana de Vela de Ilhabela, 174 veleiros com 1.200 pessoas a bordo, vindas de cinco países diferentes, estavam alinhados no canal de São Sebastião. O desafio era o de navegar, sem ligar os motores, o mais rápido possível as 25 milhas de Ilhabela até Alcatrazes e retornar. Muitos dos barcos que largaram podem ser vistos nas principais regatas do planeta. São verdadeiros Fórmula 1 dos mares, preparados para competição e com tripulantes profissionais. Mas a maior parte dos competidores tinha até cozinha em seus veleiros de turismo e lazer. Apesar do espírito de disputa, o que valia mesmo era participar. Afinal, não há velejador de final de semana que não sinta orgulho em dizer para os amigos que, pelo menos na largada, esteve lado a lado com estrelas como Robert Scheidt, por exemplo. No início da manhã do domingo, a diferença entre os barcos e os velejadores era flagrante.

O vencedor Wiki Wiki fez o percurso em 4h3m15s e superou em apenas 23 segundos o Pajero TR4/Daslu, do experiente Eduardo Souza Ramos, com uma veterana tripulação composta por brasileiros, argentinos, suecos e um neozelandês. O ânimo dos vencedores era inversamente proporcional ao cansaço dos demais. A maior parte dos barcos só chegou a Ilhabela na madrugada do domingo. E muitos aportaram com os motores ligados, o que significa que desistiram da competição em algum ponto do oceano, com problemas no barco ou na tripulação. É comum que marinheiros de primeira viagem não suportem os desafios de um mar nem sempre amigável e acabem de joelhos no convés. Foi o que aconteceu com a equipe do Estar Seguro, um veleiro de 32 pés (9,6 metros de comprimento), comandada pelo experiente capitão Antônio Neiva, com seis homens, metade deles participando de uma regata pela primeira vez.

O objetivo de Neiva era contornar Alcatrazes antes do pôr-do-sol, mas os problemas começaram exatamente quando a ilha foi avistada. O vento aumentou e as ondas cresceram muito. Com isso, a novata tripulação sofreu a primeira baixa. Um dos dois proeiros (homens que trabalham na parte da frente do barco) começou a passar mal, a ponto de não conseguir sequer ficar sentado para ajudar no contrapeso do barco. Sozinho, o outro proeiro se esforçou para dar conta da tarefa. Mas, quando chegou a Alcatrazes, acabou provando que nesse evento há muito mais atrativos do que a própria competição. O rapaz simplesmente deixou o posto e pediu ao capitão permissão para fotografar a ilha. Velho marinheiro, Neiva autorizou. Porém, fez questão de alertar que não estavam fazendo turismo. Em seguida, disse que queria uma cópia da foto. Dentro do Estar Seguro, fazer xixi, tomar água ou comer alguma coisa só era possível mediante aviso prévio e autorização posterior do capitão, que nem sempre era fornecida no momento exato do pedido.

Perto das 19 horas, já na escuridão da noite, um segundo tripulante começou a passar mal. Mais um fora da linha de trabalho. Com o passar das horas e a falta de um rigoroso preparo físico, os marinheiros foram baqueando, o cansaço tomou conta da equipe. O vento diminuiu a ponto de o veleiro registrar zero nó de velocidade. Com a calmaria e o barco chacoalhando de um lado para o outro, quase parado na noite, ia ficando cada vez mais difícil resistir ao cansaço. Em outros barcos a situação era semelhante. Muitos passaram pelo Estar Seguro com o motor ligado.

Faltavam sete milhas para completar a prova, por volta das 22 horas, quando outros dois tripulantes resolveram dormir. Estavam mortos
de cansaço. Além do capitão, restaram dois homens semi-inteiros
para levar o barco até a linha de chegada. Em duas horas, avançaram apenas 1,5 milha. Era muito sacrifício para uma tripulação que corria uma regata de percurso pela primeira vez e ainda teria mais quatro provas para correr durante a semana. A ordem foi inevitável. “Vamos ligar o motor”, disse Neiva. Às 3h do domingo, o barco chegou. Uma hora
depois, os marinheiros do Estar Seguro traçavam os planos para as demais provas da semana. Na manhã da quarta-feira 24, todos estavam a bordo para nova disputa, agora num trecho menor e algumas horas mais experientes. O esforço do dia anterior compensou. Chegaram em sétimo lugar em sua categoria.