A ordem partiu dos salões reais do Palácio de Buckingham, na Inglaterra. O consorte da rainha Vitória, príncipe Albert, decidiu que Londres sediaria, em 1851, uma grande exibição para ostentar o poderio industrial britânico. Só que o Yacth Club de Nova York e seu veloz America roubaram a cena. Feito com o que havia de mais moderno em engenharia náutica, o veleiro derrotou o oponente Aurora, dos orgulhosos britânicos, e deu início à mais importante prova de vela do mundo, batizada com seu nome. A competição reúne a nata da alta sociedade. Por ali já circularam sobrenomes ilustres, como Rockefeller, Vanderbilt e legítimos representantes da nobreza, como o rei da Espanha, ele próprio um velejador.

Ao longo de 152 anos de tradição, a America’s Cup se tornou um palco para exibir a supremacia dos Estados Unidos. Foram precisos 132 anos para que, em 1983, os australianos pusessem fim ao monopólio americano. Em 1995, a Nova Zelândia repetiu a façanha. Levou para casa dois títulos e sediou as duas copas seguintes, em 2000 e 2003.
A 31ª edição do torneio começou no sábado 15, na ilha neozelandesa
de Auckland. São nove regatas, mas quem vencer cinco leva a taça. Como as provas ocorrem ao sabor do vento do golfo de Hauraki e
os barcos não suportam rajadas acima de 23 nós, as largadas são adiadas várias vezes, e não foi diferente este ano. Quando não enfrentam o mar, os velejadores passam o tempo se exercitando
em terra, entre uma festa e outra.

A competição é uma oportunidade rara para fazer reuniões de negócios em iates suntuosos, trocar cartões com empresários de renome, conhecer beldades, ver e ser visto. Em 1895, os irmãos Lumière pegaram carona na prova para divulgar sua invenção recente, o cinema. Erguidos por cifras milionárias, os barcos testam o que há de melhor em tecnologia. Para esconder suas inovações, os times montam verdadeiros esquemas de contra-espionagem. Na fase de treinos, os barcos saem cobertos por espumas, isopor e véus para mascarar seus detalhes.

Como uma fração de segundos pode ser decisiva, o desafio é construir embarcações cada vez mais rápidas. Além do design e dos materiais ultraleves, que ampliam a hidrodinâmica, a habilidade da tripulação em tirar proveito das lufadas de vento é a chave do sucesso. O objetivo
é driblar o adversário nas três voltas do percurso de 34,2 quilômetros. Por isso, o desafio está em destrinchar a dança do vento. Não é por acaso que as equipes têm vários meteorologistas, que medem a intensidade e a direção do vento a todo instante. Os times também precisam manter cifrada a comunicação entre a base e a tripulação, através da qual se trocam dicas sobre mudanças bruscas no tempo.
Na hora H, vale a destreza, já que as conversas com a base são suspensas cinco minutos antes da largada. Para compensar, um membro da equipe se pendura no topo do mastro de 35 metros de altura e US$ 1 milhão para avistar as primeiras ondulações que prenunciam o sentido do vento. Como tempo é tudo, entre os patrocinadores estão marcas famosas de relógios, como Omega, Tag Heuer e Audemars Piguet, distribuídos como brindes aos participantes.

Nas regatas atuais, os principais avanços estão na eletrônica. Um dos membros da tripulação, o deckman participa da regata sem tirar os olhos do notebook. A bordo, ele consulta a posição dos dois barcos e passa informações precisas ao tático e ao timoneiro, o coração e o cérebro do veleiro, que tomam as decisões estratégicas nas manobras. Para facilitar a visão dos espectadores, foi criado o Virtual Spectator, um site na internet onde se baixa um programa que exibe na tela a posição de cada barco. Os dados são calculados a partir do GPS, aparelho que usa satélites para precisar a localização geográfica.

Só dois barcos participam da America’s Cup: o vencedor da copa anterior e o finalista da eliminatória Louis Vuitton, que na última edição contou com nove barcos de seis países. A campeã foi a equipe suíça Alinghi, atual favorita, que tem 120 pessoas e verba de US$ 80 milhões. O time é liderado pelo suíço Ernesto Bertarelli, que aos 37 anos comanda a empresa de biotecnologia Serono. Seu favoritismo tem nome: os neozelandeses Russell Coutts e Brad Butterworth. Juntos, em 2000
eles afundaram os planos americanos de recuperar a primazia de
sediar a Fórmula 1 das águas. Hoje, eles enfrentam seus compatriotas
da esquadra neozelandesa, composta por 95 pessoas e US$ 50 milhões. Há três anos, Coutts e Butterworth disputaram a copa ao lado do lendário velejador Peter Blake – um ídolo em seu país como Ayrton
Senna foi para os brasileiros –, assassinado há dois anos,
numa expedição pela Amazônia.

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“Ninguém me hostilizou por ser do país que matou o melhor navegador neozelandês”, conta Edgardo Vieytes, único brasileiro entre os 80 integrantes do time italiano Mascalzone Latino. Aos 24 anos, ele trabalhou na confecção das velas, de levíssima fibra de carbono e preço de US$ 100 mil, e participou dos testes no barco reserva. O esportista, que espera enfrentar sua primeira Olimpíada em 2004, se hospedou na casa do premiado brasileiro Torben Grael, tático do Luna Rossa, da grife italiana Prada. Para iniciantes como Vieytes, participar do torneio é um impulso na carreira. Na prática, não há como mensurar a importância da copa deste ano, em que um time europeu e um da Oceania disputam a superioridade náutica e põem mais uma vez por terra o sonho dos Estados Unidos, que nem sequer estão no páreo.


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