As brasileiras jamais tiveram um programa eficaz e duradouro de planejamento familiar. Houve diversas iniciativas insuficientes nas últimas décadas. A mais recente foi no ano passado, quando o governo federal distribuiu um primeiro kit de anticoncepcionais com pílulas, camisinhas masculinas e femininas para 489 municípios, o próximo lote deve seguir em abril. Outros métodos, como o dispositivo intra-uterino (DIU) e as injeções hormonais, chegaram apenas às cidades com mais de 50 mil habitantes. Desde 1999, os municípios não recebiam do Ministério da Saúde nenhum tipo de contraceptivo. A expectativa do programa seria atingir dois milhões de mulheres em 12 meses, o que equivaleria a apenas 20% de quem necessita de anticoncepcionais gratuitos.

Para evitar a gravidez, 180 milhões de mulheres ao redor do mundo se submeteram a uma técnica de esterilização com poucas chances de reversão. Na operação, feita sob efeito de anestesia, faz-se a interrupção das trompas de Falópio, canais que transportam o óvulo ao útero, onde ele é fecundado pelo espermatozóide. Quando se interrompe esse ciclo, a fertilização não acontece. Apesar de irreversível, a laqueadura de trompas é o contraceptivo mais popular entre as brasileiras. Reunimos, junto da Índia e da China, o maior contingente de mulheres esterilizadas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Em certas regiões, como o Norte e o Nordeste, sete em cada dez mulheres em idade fértil se submeteram à laqueadura. A paulista
Cláudia Teixeira Brandão, 40 anos, que dirige o centro umbandista
Ogum Male, é uma delas. Ela tinha dado à luz quatro filhas quando
fez a cirurgia. Antes, bateu à porta de muitos centros de saúde na tentativa de se submeter à cirurgia, sem sucesso. Em 1989, ela pagou R$ 1 mil reais ao médico que fez o parto de sua terceira filha para que ele fizesse sua laqueadura, mas desistiu da operação. Nos seis anos seguintes, Cláudia conviveu com a sua intolerância às pílulas. “Senti muito enjôo, vomitei e engordei”, lembra.

Nem todas as mulheres deram a palavra final, como Cláudia. A baiana Maria Rosa (nome fictício), descobriu que engordara as estatísticas de esterilização quando acordou da anestesia. Durante o parto de seu quarto filho, o médico e seu marido tomaram a decisão de submetê-la a uma ligadura de trompas. “Meu marido achou que eu tinha de parar de engravidar para não perder o emprego e deixou o médico fazer a operação”, conta. Se quisesse, Maria Rosa poderia processar o marido e o médico por lesão corporal. Como ela, há outras mulheres que são operadas no parto, sem saber. A maioria acaba concordando com a cirurgia porque, em geral, já tem muitos filhos e os outros métodos contraceptivos são caros e de difícil acesso.

Atualmente, faz-se laqueadura em cerca de 20% dos partos. A maioria deseja a cirurgia, mas há uma parcela de mulheres que se arrepende. O ginecologista Paulo Olmos atende pelo menos uma paciente por semana que deseja voltar atrás e recuperar a capacidade de gerar filhos. “Muitas mulheres ainda fazem laqueadura porque não conseguem convencer os maridos a usar preservativos e outros métodos para evitar filhos e doenças”, explica Amélia Teles, presidente da União de Mulheres, entidade feminista de São Paulo.

A origem dessa preferência remonta aos anos 70. “Muitos especialistas e jovens médicos eram convidados a aprender novas técnicas de cirurgia e a lidar com os métodos anticoncepcionais, entre eles a ligadura de trompas”, diz o ginecologista Hélio Aguinaga, 86 anos, um dos pioneiros na criação de clínicas de planejamento familiar e autor de dois livros sobre contracepção no Brasil em que relata os excessos cometidos na ocasião. “No serviço público, muitos médicos optaram pela cesariana, ainda que o parto pudesse ser normal, para fazer a ligadura e cobrar mais por fora”, conta Aguinaga. Chamada de dobradinha, essa prática continua vigente. Um dos seus desdobramentos é a inclusão do Brasil na lista de países onde se faz mais partos cirúrgicos no mundo. De 15% dos partos em 1970, as cesarianas chegam a representar quase 70% dos nascimentos em algumas cidades paulistas.

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Tripla jornada – Até o final da década de 90 a esterilização foi praticada de maneira clandestina, pois era vista como uma cirurgia lesiva. Após o esforço do movimento feminista, o Congresso aprovou uma lei determinando critérios para a intervenção. Permitiu a cirurgia para mulheres acima de 25 anos ou com 21 anos e dois ou mais filhos. Curiosamente, foi durante os anos em que a laqueadura foi o método mais usado que houve a maior queda de natalidade no País. Os especialistas sustentam, porém, que a laqueadura é apenas um dos ingredientes dessa transformação.

“A diminuição da fecundidade é resultado de uma multiplicidade de fatores”, afirma Marcos Bernardino de Carvalho, chefe do curso de geografia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Estão entre eles a migração do campo para a cidade, a tripla jornada feminina (cuidar da casa, dos filhos e trabalhar fora), a liberdade sexual, o acesso aos métodos anticoncepcionais e a Aids. “O alvo das políticas controladoras da natalidade não era evitar a miséria e sim preservar a capacidade de pagar os grandes empréstimos. Um país que não pára de crescer, na visão capitalista, pode não ter condição de quitar seus compromissos porque precisa fazer mais investimentos em educação, saúde e transporte”, explica Carvalho.


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