Os personagens do escritor mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968) parecem ter sido arrancados a fórceps do lado escuro e obscuro da vida, do limbo dos becos e do anonimato das existências levadas à força. Suas paixões são tortuosas, envergonhadas e, em geral, terminam em dramas que mal mereceriam algumas linhas nos rodapés do noticiário policial da vida real. Mas é dessa matéria-prima encardida e esgarçada que Cardoso cria textos vigorosos. Inácio, o enfeitiçado e Baltazar (Civilização Brasileira, 384 págs., R$ 35) poderia
até ser considerada obra menor do autor do impressionante romance Crônica da casa assassinada, que, nos anos 70, rendeu um ótimo filme
de Paulo Cezar Saraceni. Primeiro, porque é um livro inacabado: o final, na verdade, é indefinido, ficou pendente com a morte de Cardoso
e a editora optou por publicar mesmo assim, apontando algumas incoerências, problemas de revisão e roteiros de soluções possíveis
que o autor havia avaliado para a história.

No entanto, as três histórias separadas, mas que se interligam, poderiam ser avaliadas como um déjà vu da obra de Lúcio Cardoso, o eterno
arauto do bas-fond. Seus personagens, o jovem e perturbado Rogério Palma, que vaga pelos antros mais baixos da noite carioca; o dúbio e traído Inácio; o medíocre insinuante Lucas Trindade; ou a trambiqueira gorda, misto de cafetina e cartomante Lina de Val-Flor, bem que poderiam, em algum momento de suas insignificantes vidas, ter dividido um quarto de pensão barata com os ressabiados solitários da Crônica…. São todos faces anêmicas da mesma miséria social, daquele universo
que a sociedade de bons modos e vida certinha insiste em ignorar.
Lúcio Cardoso nunca os ignorou.