Roman Polanski não tem bons motivos para se lembrar da infância. Foi sobrevivente do Holocausto, viveu no gueto de Cracóvia e perdeu a mãe num campo de concentração nazista. Mas, ao rodar O pianista (The pianist, Inglaterra/ França/
Alemanha /Holanda/ Polônia, 2002), cartaz nacional na sexta-feira 7, o diretor francês de origem polonesa teve de encarar inúmeras recordações desagradáveis. Uma delas é mostrada na cena em que um grupo de judeus maltrapilhos, já estampando os efeitos da inexorável máquina de extermínio, é obrigado a dançar cada vez mais rápido a mando dos soldados alemães. Tomados de um humor insano e bestial, os oficiais nazistas impingem pares disparatados de mulheres altas com homens baixos, de paralíticos com pessoas sãs, numa dança macabra. Completada a sequência, Polanski perguntou ao co-produtor do filme, Gene Gutowski, outro polonês sobrevivente da morte, se a cena parecia real. A resposta afirmativa veio num olhar revestido de profunda tristeza.

Talvez por esta razão, durante 40 anos Polanski tenha relutado em
tocar no tema deste filme baseado nas trágicas memórias do músico Wladyslaw Szpilman (1911-2000), escritas em 1946, mas publicadas
na íntegra apenas nos anos 90. De tão afetado pelas lembranças o cineasta recusou, inclusive, o convite de Steven Spielberg para dirigir
o premiadíssimo A lista de Schindler, que o próprio Spielberg comandou
e com o qual iniciou seu processo de maturidade profissional. “Queria fazer um filme sobre o período, mas não encontrava o material certo”, conta Polanski. Se encontrar o enredo apropriado já é meio caminho andado na realização de um grande filme, pode-se perfeitamente
afirmar que o diretor foi muito bem-sucedido na outra metade. Sem
cair no sentimentalismo nem na frieza total, O pianista é seu melhor trabalho em anos. Polanski desenhou o tom certo no tratamento de
um tema exaustivamente explorado e, assim, alinhou sua fita entre
as grandes obras já feitas sobre a perseguição aos judeus
durante a Segunda Guerra.

Desde sua exibição no Festival Internacional do Filme de Cannes, em maio de 2002, quando levou a Palma de Ouro, O pianista vem colecionando os mais importantes prêmios da indústria cinematográfica, como o Bafta inglês e o César francês. Em março próximo, o drama histórico disputará sete Oscar. Só que, se pisar em Los Angeles, Roman Polanski pode sair da cerimônia direto para as grades. Ele é foragido da Justiça dos Estados Unidos desde 1978, quando pegou um avião para a França às vésperas de ser levado a júri, acusado de estuprar uma menina de 13 anos, violentada sob efeito de drogas e álcool. Ironia ou coincidência, uma década antes sua mulher, Sharon Tate, foi assassinada num ritual satânico a mando de Charles Manson.

O pianista prima por um certo distanciamento ao ir fundo na ignomínia do anti-semitismo. Mesmo porque, em se tratando de um depoimento de quem escapou dos campos de concentração, a história muda de rumo justamente no momento crucial em que os outros filmes do gênero costumam afundar. Ou seja, quando milagrosamente um polonês colaboracionista arranca Szpilman (Adrien Brody) das filas que levavam os judeus aos trens com destino aos campos malditos. Mas antes o que se vê é uma espiral
de horror acompanhada de enorme desconforto. Detalhista, porém
nada enfático, Polanski exibe com rapidez a progressiva pilhagem
da dignidade humana.

Duas cenas terríveis, a do pai de Szpilman sendo espancado por não se curvar diante de um soldado alemão e a da mulher levando um tiro na cabeça porque pergunta a um oficial nazista para onde estava sendo levada, fazem parte das tristes memórias de Polanski. A primeira aconteceu com seu pai no início da ocupação; a segunda, ele mesmo presenciou. São recordações tão vívidas que, ao visitar Cracóvia à procura de locações, ele decidiu não centrar ali as cenas do gueto de Varsóvia. Acabou optando pelos estúdios berlinenses de Babelsberg. “Não conseguiria filmar aquelas cenas na Polônia, ouvindo os atores alemães gritando, vestidos em trajes militares.”

Por motivos opostos, outra decisão sábia de Polanski foi investir no talento do ator americano Adrien Brody, de Além da linha vermelha, perfeito na sua encarnação de Wladyslaw Szpilman. Para tornar mais realista a progressiva animalização do personagem, que passa a viver como um rato, escondido nos escombros da capital polonesa, Brody emagreceu 14 de seus 73 quilos. Mas o que conta é sua fina interpretação. Szpilman sobrevive a todas as provas. Seu encontro com o oficial alemão Wilm Hosenfeld (Thomas Kretschman) que, às vésperas do avanço russo, lhe dá comida, roupa e proteção após ouvi-lo executar a Balada nº 1 em sol menor, opus 23, de Chopin, é a melhor prova de como um grande ator (e um grande diretor) consegue atingir o máximo de sensibilidade em meio ao retrato da mais absoluta barbárie.