“No antigo Paço da Boa Vista, nas audiências dos sábados, quando recebia toda gente, atendeu D. Pedro II a um negro velho, de carapinha branca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, se descobria o sinal de muitas penas e muitos maus-tratos.

– Ah, meu senhor grande! – exclamou o infeliz. Como é duro ser escravo!…

O magnânimo imperador encarou suas mãos cansadas no leme da direção do povo e aquelas outras, engelhadas nas excrescências dos calos adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranquilizando-o, comovido:

– Oh, meu filho, tem paciência! Também eu sou escravo dos meus deveres e eles são bem pesados… Teus infortúnios vão diminuir…

E mandou liberar o preto.

Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso monarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do ex-ministro; às primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande exilado:

– Em suma, estou satisfeito e tranquilo.

E, aludindo à sua expatriação:

– É a minha carta de alforria… Agora posso ir onde quero.

A coroa era pesada demais para a cabeça do monarca republicano. Aos que me perguntarem no mundo sobre a minha posição em face da morte, direi que ela teve para mim a fulguração de um Treze de Maio para os filhos de Angola.”

Como o leitor já deve ter percebido, este texto foi escrito por um morto. Não um morto qualquer, mas Humberto de Campos, escritor e jornalista maranhense que fez grande sucesso a partir da segunda década do século XX. Cronista cheio de verve crítica e humor, seus textos se espalharam por jornais de todo o país, tornando-o um dos escritores mais populares de sua época. O tal texto de Campos teria sido psicografado por Chico Xavier em 1935. Prossegue o finado escriba:

“A morte não veio buscar a minha alma, quando esta se comprazia nas redes douradas da ilusão. A sua tesoura não me cortou fios da mocidade e de sonho, porque eu não possuía senão neves brancas e rígidas à espera do sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua foice derrubadora… Na minha trincheira de sacos de água quente, eu a vi chegar quase todos os dias… E na minha alegria bárbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um lutador romano aureolado de rosas… Adormeci nos seus braços [da morte, sim] como um ébrio nas mãos de uma deusa”.

Humberto de Campos morreu em 1934, aos 48 anos, quase cego e gravemente enfermo. Do além, nesta “Carta aos que Ficaram”, ele sentencia: “E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurélio [segundo consta, alcunha dada ao imperador brasileiro por ninguém menos que Victor Hugo, o grande escritor francês], no tocante à morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra:

 - É a minha carta de alforria… Agora posso ir onde quero.

Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu coração”.

Seja um texto de Chico Xavier ou escrito por Humberto de Campos através de sua pena – e antena espiritual -, ninguém poderá negar que o relato tem estilo, ainda que abuse das expressões rebuscadas típicas da época. Tempos depois, diante do sucesso dos textos psicografados de Humberto, os familiares do “autor” exigiram royalties sobre suas crônicas d’além-túmulo, o que obrigou Xavier a buscar outras conexões literárias. Ele ainda psicografaria sonetos de Cruz e Sousa, Antero de Quental e Augusto dos Anjos, além de contundentes crônicas póstumas de Eça de Queiroz.

Vida além da morte? Reencarnação? Psicografia? Não creio. Tampouco duvido convictamente. São de Rita Lee os versos sátiro-filosóficos que ora faço meus: “Não acredito em nada, só não duvido da fé”.