17/04/2002 - 10:00
Com o mesmo uniforme camuflado e a inseparável boina vermelha de pára-quedista que usava quando tentou dar um golpe de Estado em 1992, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, saiu do Palácio Miraflores e se dirigiu ao Forte Tiuna, em Caracas, onde fica o comando-geral do Exército da Venezuela. Acompanhado por alguns ministros, o ex-tenente-coronel Chávez apresentou sua renúncia a três oficiais-generais, se entregou aos militares e foi detido. Era 1h30 da madrugada da sexta-feira 12. Terminava assim a meteórica “revolução bolivariana”, movimento populista iniciado com a eleição de Chávez em 1998. O penúltimo ato da tumultuada passagem de Chávez pelo poder culminou na quinta-feira 11 com uma greve geral por tempo indefinido, decretada por sindicatos de trabalhadores da Petroleos de Venezuela SA (PDVSA), a indústria estatal de petróleo, com apoio do empresariado, seguida de uma gigantesca manifestação contra o governo. A violenta repressão aos manifestantes deixou pelo menos 16 mortos e mais de 100 feridos e levou as Forças Armadas a retirar o apoio a Chávez, num dos mais insólitos golpes de Estado da América Latina. Ao tomar conhecimento da renúncia, centenas de pessoas saíram às ruas de Caracas buzinando, disparando fogos de artifício e acendendo velas. O empresário Pedro Carmona, 61 anos, presidente da Fedecámaras, a associação de empresários da Venezuela e um dos principais líderes do movimento antichavista, assumiu no Forte Tiuna a Presidência do governo de transição prometendo a realização de eleições no curto prazo. O anúncio fez os preços do petróleo despencarem para menos de US$ 25 o barril no mercado internacional, já que a Venezuela é o quarto maior exportador de petróleo do mundo. “O que estamos vivendo é um golpe de Estado, apesar de esta palavra não estar sendo usada. A Constituição prevê que, na saída do presidente, assume o vice. O problema é que ele (Diosdado Cabello) é um aliado de Chávez”, disse a ISTOÉ o analista Pablo Aiquel, do jornal Nacional, de Caracas. “Está havendo perseguição. A polícia entra na casa de parlamentares dizendo que estão em busca de armas. Estão destituindo governadores democraticamente eleitos”, completou. Na sexta-feira 12, o Itamaraty divulgou uma nota oficial demonstrando preocupação do Brasil pelo fato de a crise política venezuelana ter sido resolvida através de um golpe militar. “O Brasil lamenta a ruptura da ordem institucional e deplora os atos de violência”, diz a nota.
Na tarde de quinta-feira 11, cerca de 300 mil manifestantes marcharam em direção ao Palácio Miraflores para exigir a renúncia de Chávez, 47 anos, cujo mandato terminaria só em 2007. A violenta repressão ao protesto que se seguiu foi feita com franco-atiradores postados em edifícios próximos ao palácio, policiais à paisana e soldados da Guarda Nacional, que abriram fogo nos manifestantes. Num pronunciamento transmitido em cadeia de rádio e tevê, um Chávez desafiante acusou os canais privados de incitamento à rebelião e ordenou a suspensão das transmissões por tempo indeterminado, fato até então sem precedentes na Venezuela. À noite, o comandante do Exército, general Efraín Vásquez, pediu desculpas à população pela repressão e ordenou aos comandantes que permanecessem aquartelados. “Isso
não é um golpe de Estado, é uma posição de solidariedade com o povo venezuelano”, disse. Antes disso, 40 oficiais-generais, entre eles o comandante da Marinha, Héctor Ramírez Pérez, já haviam se rebelado contra Chávez. As declarações dos militares sublevados foram transmitidas pelas tevês privadas, que voltaram a funcionar com
antenas via satélite.
Populismo – O ex-golpista Hugo Chávez fez campanha prometendo acabar com o domínio de uma das oligarquias mais retrógadas do continente, varrer a corrupção generalizada e combater a crescente criminalidade. O presidente contra o qual ele e seus companheiros de farda se levantaram em 1992, Carlos Andrés Pérez, era odiado pela população por ter adotado medidas econômicas duríssimas, com o aval do FMI, que levaram a uma rebelião popular em Caracas que terminou com 300 mortos. O discurso chavista conquistou os corações e mentes dos venezuelanos mais pobres, setores excluídos economicamente e desiludidos com os políticos tradicionais. Afinal, a Venezuela é um país que, apesar de nadar há décadas na riqueza do “ouro negro”, ainda mantém 70% da população abaixo do nível de pobreza.
A eleição de Chávez, em 1998, marcou o fim definitivo do condomínio político de dois partidos, a Ação Democrática (AD, social-democrata) e o Copei (social-cristão), que desde o fim da ditadura do general Pérez Jimenez, em 1958, partilhavam o poder montados num vasto sistema de corrupção e clientelismo financiado pelos lucros do petróleo. Chávez virou as instituições de cabeça para baixo, convocou uma Constituinte, legitimou-se a golpes de plebiscito e interveio no Judiciário.
Desgaste – No início, o presidente desfrutou de grande popularidade e, apoiada nela, montou uma ampla maioria parlamentar. A certeza de que liderava um processo revolucionário era tanta que ele até mudou o nome do país, que passou a se chamar “República Bolivariana da Venezuela”.
Chávez acreditava encarnar o libertador Simón Bolívar. Buscando um novo papel para as Forças Armadas, ele colocou militares em escolas e repartições públicas e lhes concedeu amplas vantagens salariais. Mas, ao mesmo tempo, montava “falanges bolivarianas”, verdadeiras tropas de assalto para defender as reformas nas ruas contra os opositores. Isso o fez entrar em choque com vários setores da sociedade, a começar pela mídia e os empresários, que se tornaram totalmente hostis ao governo. Depois, foram os confrontos com a Igreja Católica. A incapacidade de atender às demandas sociais fez crescer dia a dia um estado de rebelião social. As próprias organizações de esquerda que o apoiaram, como o Movimento ao Socialismo (MAS) foram alijadas do poder. “Ele não tolera críticas”, disse Felipe Mújica, líder do MAS. A estes se somou a classe média, irritada com o autoritarismo do ex-coronel. Como se não bastasse, Chávez hostilizava abertamente os americanos aproximando-se de Fidel Castro, fazendo acenos à guerrilha colombiana e visitando inimigos dos EUA como Saddam Hussein e Muammar Kadafi.
“Esse golpe não é novidade. Os militares venezuelanos já vinham se pronunciando contra Chávez”, disse a ISTOÉ o sociólogo William Gonçalves, coordenador de pós-graduação de história de relações internacionais. “Suas medidas deixaram inconformadas as elites e oligarquias que controlavam o país, pois sua política se voltava às camadas mais pobres”, acrescenta. O professor Clovis Brigagão, diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas da Universidade Cândido Mendes, discorda. “Desde que ele foi eleito, muitos intelectuais de esquerda acharam que Hugo Chávez seria a redenção da América Latina”, disse ele a ISTOÉ. “Esse cesarismo, essa perspectiva de salvação pela via militar é algo fora de época no continente. Seus simpatizantes vão dizer que ele caiu por força do imperialismo, mas a verdade é que o povo não estava satisfeito com ele”, garante. Para um coronel do Exército venezuelano, a tendência atual é uma intervenção com a posterior devolução do poder aos civis. Mas ele admite que a situação deixa o país sob o risco de ditadura. “Sejam lá quais forem os motivos do golpe, os princípios democráticos foram desrespeitados e entramos em mais um ciclo de exceção”, diz o professor Gonçalves.
Do golpe ao golpe
Golpista fracassado que triunfou nas urnas, Hugo Chávez governou durante três anos e dois meses de mudanças políticas radicais, tensão social e confrontos entre o líder bolivariano e todos os que puseram obstáculos ao seu processo revolucionário
1992
4 de fevereiro: o tenente-coronel pára-quedista Hugo Chávez Frías e outros quatro comandantes se rebelam contra o presidente Carlos Andrés Pérez, mas fracassam e são presos
1994
Março: Chávez sai da prisão em troca de passar à reserva
1998
6 de dezembro: Hugo Chávez, do Movimento V República (MRV), é eleito presidente da Venezuela com 56,2% dos votos
1999
2 de fevereiro: toma posse jurando sobre a Constituição caduca, prometendo convocar um plebiscito para eleger uma Assembléia Nacional Constituinte
17 de fevereiro: Chávez pede ao Congresso poderes especiais
22 de abril: o Congresso aprova lei permitindo a Chávez legislar por decreto em matéria econômica durante seis meses
25 de abril: cerca de 88% dos eleitores aprovam em referendo a convocação da Constituinte
25 de julho: a Assembléia Constituinte é eleita com 124 chavistas entre os 131 deputados
15 de dezembro: os venezuelanos aprovam a nova Constituição Bolivariana
2000
4 de fevereiro: o governador de Zulia, Francisco Arias, o diretor do Disip (polícia política), Jesús Urdaneta, e o coordenador do MVR, participantes da tentativa de golpe de fevereiro de 1992, rompem com Chávez
30 de julho: Chávez vence as novas eleições presidenciais com 59% dos votos e os chavistas controlam a Assembléia Nacional, as regionais e os municípios
6-16 de agosto: Chávez faz um giro por países da Opep e se transforma no primeiro mandatário estrangeiro a pisar em Bagdá depois da Guerra do Golfo. Visita também o dirigente da Líbia, Muammar Kadafi
7 de novembro: a Assembléia Nacional dá ao presidente poderes especiais para legislar por decreto durante um ano em matérias econômica, social e administrativa
2001
11-13 de agosto: Fidel Castro realiza sua terceira visita oficial à Venezuela desde a chegada de Chávez ao poder 13 de novembro: Chávez aprova por decreto 49 leis econômicas, entre elas uma reforma agrária, o que provoca protestos de empresários e outros setores
sociais
10 de dezembro: a central sindical patronal Fedecámaras convoca uma greve para protestar contra as 49 leis e o movimento recebe apoio de diversos setores sociais e paralisa o país
2002
23/24 de janeiro: Caracas é palco de duas grandes manifestações, uma pró e outra contra o governo. O presidente destitui seu mentor Luis Miquilena do Ministério do Interior
4 de fevereiro: Chávez comemora o décimo aniversário de sua tentativa de golpe com uma manifestação e a oposição protesta se vestindo de luto. O coronel da Força Aérea Pedro Soto pede a renúncia de Chávez. O capitão da Guarda Nacional Pedro Flores se solidariza com Soto, que também recebe apoio do contra-almirante Carlos Molina e do general Román Gómez
12 de fevereiro: Chávez decreta medidas econômicas especiais, entre elas a flutuação do
bolívar, que provoca disparada da inflação
26 de fevereiro: diretores da estatal Petróleos de Venezuela SA (PDVSA) se negam a entregar seus cargos ao governo
15 de março: os altos executivos da PDVSA se declaram em greve contra o governo
9-11 de abril: com apoio empresarial, a Confederação de Trabalhadores de Venezuela (CTV) inicia uma greve de 24 horas, que se amplia a 48 para depois se tornar indefinida
11 de abril: milhares de pessoas se manifestam em frente ao palácio de Miraflores para pedir a renúncia de Chávez. A repressão faz pelo menos 16 mortos. Os chefes militares pedem a saída do presidente
12 de abril: Chávez se entrega a três altos comandantes militares no Forte Tiuna. O empresário Pedro Carmona assume o governo provisório