Pode ser que o resto do mundo não aprove ou não goste do governo de George W. Bush. Os Estados Unidos, no entanto, têm opinião oposta. Na terça-feira 5, os cidadãos do país deram decisiva vitória aos candidatos do partido do presidente, o Republicano, nas eleições legislativas e nas executivas estaduais. Estavam em jogo alguns milhares de cargos legislativos regionais: governos de 36 dos 50 Estados, 34 das 100 cadeiras do Senado e toda a Câmara dos Representantes. No final daquele dia, o naufrágio da nau capitaneada pelo Partido Democrata teve proporções titânicas. Não só foi mantida a maioria republicana na Câmara – com possíveis ganhos de novas posições –, mas também foi devolvido ao partido o controle do Senado, que estava nas mãos da oposição. Um domínio de poder somente conquistado outras duas vezes pelos republicanos, desde a Guerra de Secessão (1861-1865). Estados que havia anos eram curral democrata, como a Geórgia e Maryland, por exemplo, foram também para o balaio dos amigos de Bush. Seu irmão caçula, Jeb Bush, que parecia ter reeleição ameaçada no governo da Flórida, amealhou expressivos 60% dos votos locais, completando a festa da família. Deu-se, portanto, uma espécie de “segundo turno” ou plebiscito, em que o presidente finalmente validou com sobras o mandato que havia conseguido com a ajuda da Suprema Corte, no controvertido pleito do ano 2000. Serve para George W. Bush a frase do ex-técnico da Seleção Brasileira de futebol, Zagallo: “Vocês vão ter de me engolir!”

Para o Brasil, porém, esta degustação pode ter sabores agridoces. Por um lado, a empáfia do governo Bush deverá tornar ainda mais pesada a mão de sua política exterior. Por outro, as negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) estarão sendo conduzidas mais de acordo com a agenda de interesses defendida pelo Partido Republicano, que costuma ser menos disposto a fazer concessões às exigências dos grupos sindicalistas do país. “Com um Congresso mais afinado com os interesses do capital do que dos sindicatos, fica mais fácil mexer no protecionismo de alguns setores da economia americana”, afirma George Greenhorn, consultor econômico dos republicanos. “Desde sua posse, o presidente Bush vinha afirmando que a Alca era prioridade de seu governo. Os atentados terroristas de 11 de setembro desviaram sua atenção para as questões de segurança. Mesmo assim, com maioria no Congresso, o presidente pode retomar seus projetos econômicos com mais folga. “Creio que em termos de Alca será mais fácil para o Brasil ter ouvidos receptivos nas conversas sobre leis antidumping e outras divergências”, diz Greenhorn. É bom lembrar, porém, que os democratas ainda podem empacar a caminhada rumo ao mercado livre, pois a
maioria republicana nas duas casas do Legislativo não é tão folgada
que permita poderes absolutos a Bush.

Mesmo assim, a derrota democrata foi tão vergonhosa que o frenético James Carville, o mitológico marqueteiro político do partido, enfiou a calva cabeça numa lata de lixo diante das câmaras da rede CNN, onde comentava as eleições. A vergonha estende-se também a toda a bancada de seus correligionários, que durante dois anos de império Bush II não soube ser oposição. “Na verdade, estes resultados são apenas o desfecho da capitulação do Partido Democrata à política do atual governo”, disse a ISTOÉ o veterano analista político George Stephanopoulos, ex- membro do círculo íntimo do poder de Bill Clinton, ex-companheiro de Carville e atual comentarista da Rede ABC. “Contra fatos não há argumentos: mesmo tendo a maioria no Senado, os democratas aprovaram grande parte da agenda política do presidente, não apresentaram alternativas para os itens que criticavam e pouco se distinguiram de seus rivais republicanos”, diz Stephanopoulos.

Rufar de tambores – A esta certa flexibilidade de espinha dorsal, acrescentou-se também a tremenda ajuda que o radical islâmico Osama Bin Laden e seus asseclas deram à popularidade do presidente. Sessenta e oito por cento do povo americano, segundo pesquisas do diário The New York Times, acham que os republicanos são melhores na defesa do país. O rufar de tambores e a estridência dos clarins de guerra soados pela Casa Branca acabaram por abafar as vozes democratas que ainda tentavam mostrar serviço ao eleitorado. A oposição nem sequer tem a desculpa de ter sido pega de surpresa nesta tática. Há cerca de
um ano, um estagiário democrata no Congresso encontrou um CD
perdido nos jardins da praça em frente à Casa Branca. A leitura do achado revelou que se tratava de toda a estratégia política idealizada para o Partido Republicano pelos marqueteiros da Presidência. As instruções eram claras: os republicanos deveriam trombetear a guerra
ao terrorismo e segurança nacional até a rouquidão. O plano foi seguido
à risca, com George W. Bush puxando o coro. E, mesmo sabendo antecipadamente como seria o ataque inimigo, as tropas democratas
não conseguiram montar o contra-ataque.

A agressividade eleitoreira de Bush começou a ficar patente já nas prévias de seu próprio partido. Passando por cima do establishment republicano, o presidente foi escolher a dedo os candidatos que mais o agradavam. Nenhuma candidatura parecia tão pequena que não contasse com a atenção da Casa Branca. “Chegou-se a um ponto que havia muita gente ofendida com a mão pesada com que o presidente remexia o caldeirão político do partido”, diz Scott Garrett, deputado estadual eleito pelo Partido Republicano. Para compensar suas imposições, porém, o presidente bateu recordes de arrecadação de fundos de campanha por todo o país, enchendo os cofres do partido com munição jamais vista. Fez mais: numa arrancada final, peregrinou por todos os Estados onde havia chances para republicanos. Em seus discursos, Bush batia nas mesmas teclas: segurança nacional e guerra ao terrorismo ou a quem, como Saddam Hussein, desafia Washington.

E, nesta toada, a cavalgada dos correligionários de Bush transformou em terra arrasada as cidadelas democratas. Num Estado como Maryland, onde não se tinha um governador republicano havia 36 anos, o ex-deputado Robert Ehrlich Jr. conseguiu esta proeza e mais: derrotou a popular vice-governadora Kathleen Kennedy Towsend, filha do falecido senador Robert Kennedy. Na Geórgia foi pior: a deputada Saxby Chambliss se elegeu governadora, num Estado que não colocava um republicano em seu palácio desde a época da chamada “reconstrução”, pós-guerra civil.

As consequências dessa vitória republicana contêm todos os ingredientes dos piores pesadelos dos liberais americanos. São esperadas indicações de juízes à direita de Átila, o huno, para ocupar, pelo menos, duas cadeiras da Suprema Corte que devem vagar nos próximos dois anos. Os alicerces de um Poder Judiciário ultraconservador serão erguidos a partir das aprovações que estavam pendentes, de juízes apontados por Bush para as cortes federais. O presidente vinha reclamando das obstruções democratas a esses ungidos, bem como da oposição à aprovação de leis pretorianas de seu plano de medidas para segurança interna. Estes itens, e muitos outros, serão espólios da vitória a partir da posse do novo Congresso. Espera-se também que os chamados falcões da guerra, os linha-dura da equipe de governo, ganhem ainda mais autonomia de vôo. Como diz o chavão jornalístico: “Agora é guerra”, Saddam Hussein que corra para seu bunker. E o restante do mundo pode esperar o recrudescimento de outro chavão: “Ou está conosco ou está contra nós”, do vocabulário limítrofe de George W. Bush.