No palco nu, coberto apenas por um piso de madeira que se eleva ao fundo como uma parede, bailarinos vestindo roupas plásticas transparentes apresentam suas credenciais, igual aos anúncios de classificados. Marcados por códigos de barra e pelo conhecido carimbo de produto frágil à altura do coração, João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili contam suas vantagens sem, contudo, conseguir esconder a solidão estampada no rosto. Feitas as devidas apresentações, uma voz vacilante resume o destino dos ali presentes. “João amava Teresa, que amava Raimundo/que amava Maria, que amava Joaquim, que amava Lili/que não amava ninguém.” O poema, todos conhecem, é Quadrilha. E para deleite da platéia do espetáculo Sem lugar, do grupo mineiro de dança 1º Ato, é declamado na voz do próprio autor, o mineiríssimo poeta Carlos Drummond de Andrade, cujo centenário de nascimento, acontecido no dia 31 de outubro, tem sido alvo de várias homenagens. Sem lugar, que já passou por Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo e iniciou turnê pelo Sul do País na sexta-feira 8, em Curitiba, é uma das ótimas surpresas deste pacote comemorativo.

Surpresa porque não se trata de um sarau dançante e didático.
Segundo Suely Machado, diretora artística e diretora-geral do balé,
a idéia foi evitar a ilustração óbvia da poesia drummondiana, cuja modernidade dispensa penduricalhos. “Não queríamos fazer uma transposição literal da sua obra, o que se revelaria muito pobre”,
explica Suely. Assim, a opção da trupe pilotada pelo coreógrafo Tuca Pinheiro foi incorporar a famosa “pedra no meio do caminho” – elemento cenográfico onipresente no espetáculo –, ao preferir trabalhar com os temas mais recorrentes na vida e na obra do poeta de ferro na alma, como as lembranças da infância em Itabira, o erotismo, a solidão, a obsessão, o olhar para baixo e a avareza do sorriso.

O resultado é uma coreografia repleta de gestos do cotidiano, que dialoga em profundidade com a poética do homenageado. Num dos belos momentos, um casal se entrelaça de pé sobre um colchão até a mulher escorrer pelo corpo do amante, congelado no vazio de um abraço. Em referência ao poema Amor e seu tempo, a coreografia frisa aquele instante ilusório no qual o objeto do amor já se foi, mas ainda não abandonou a memória do corpo. Apesar de ter surgido de um convite de Pedro Drummond, neto do poeta, o espetáculo coincidiu com outra data não menos especial: as duas décadas de existência do 1º Ato. Há 11 anos o grupo é patrocinado pelo Banco Rural, na pessoa de sua presidente, Kátia Rabello, numa parceria que tem possibilitado à trupe alçar vôos cada vez mais ambiciosos como este Sem lugar.