A ÚLTIMA PARADA Arthur Carvalho, tesoureiro
do 38º Batalhão em Vila Velha, desfila no 7 de Setembro

Era manhã de sexta-feira, 28 de abril de 2006. No quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, em Vila Velha (ES), os militares se preparavam para marchar pela cidade, num exercício de rotina. O primeiro tenente Arthur Felipe de Carvalho Julião, 26 anos, estava perfilado. De repente, saiu da forma e dirigiu-se ao alojamento de oficiais. Às 10 horas, ouviu-se um tiro. Arthur estava morto, com um tiro na testa. Seu corpo foi encontrado no banheiro, sobre a pistola 9 milímetros que usava em serviço. Ao lado, um lenço cinza trazia mensagens escritas aos amigos e à família: “Me desculpem por tudo.” O inquérito policial militar que investigou a tragédia concluiu que houve suicídio. Mas, passados 11 meses, a morte do tenente ainda assombra a caserna. A hipótese de assassinato dentro do quartel é investigada pelo Ministério Público Militar (MPM). Arthur, tesoureiro do quartel, lidava com muito dinheiro e sabia demais.

O inquérito puxou o fio da meada de uma série de irregularidades no batalhão que poderiam resultar em graves punições para colegas de patentes inferiores e superiores. O caso tem mobilizado oficiais não só em Vila Velha, mas também no Rio de Janeiro – onde está o Comando Militar do Leste (CML), ao qual o batalhão está subordinado – e em Brasília, sede do comando-geral do Exército. ISTOÉ teve acesso aos autos, que tramitam sob segredo. São três volumes principais, mais 94 anexos, com documentos que atestam deslizes financeiros e administrativos do quase sempre hermético universo militar.

O caso mais importante envolve uma dívida milionária do batalhão com o Hospital Santa Mônica, situado num bairro vizinho. Há quase 20 anos o hospital presta serviços ao quartel. Mas, a partir de 2005, o atendimento passou a ser feito sem licitação nem contrato entre as partes. Mesmo assim, o hospital cobrava do Exército uma fatura de R$ 2,2 milhões. O tenente Arthur se negava a fazer o pagamento e sofria pressões para fazê-lo. Religioso, 25 dias antes de morrer, durante uma aula de crisma na Igreja Católica que freqüentava, ele anotou no caderno: “Tô tenso! Dívida com o Hosp. Santa Mônica no valor de R$ 2.200.000,00 não tem como pagar (…) O comandante tá obrigando a pagar.” A anotação é corroborada por depoimentos. “[O tenente] sentia-se pressionado pelo Comando do Batalhão e pelo setor financeiro do Hospital Santa Mônica para realizar o pagamento que não estava de acordo e não seguia a legislação vigente”, diz uma testemunha. Outro depoente relata uma conversa que teve com o próprio Arthur sobre seu drama, um dia depois de uma reunião na casa do comandante: “A ordem é pagar tudo, e eu, tenente Arthur Carvalho, não pago! Não pago! Não pago!”

 

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PRESSÃO O chefe Otávio mandou
pagar dívida ilegal

 

 

O comandante em questão é o tenente-coronel José Otávio Gonçalves, chefe do batalhão. Ele admite que mandou o tenente pagar a dívida. “Eu dito como proceder administrativamente, mas o tenente, talvez por falta de informação ou pela pouca experiência, não queria pagar”, disse a ISTOÉ. “Apesar da situação irregular, a União devia ao hospital”, emenda.

O MPM quebrou o sigilo telefônico dos envolvidos. A promotora Adriana Santos, responsável pela investigação, cobrou explicações de instâncias superiores do Exército. Em 26 de janeiro, enviou ofício ao comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira Filho, questionando os mecanismos de fiscalização dos contratos dos quartéis. Também pediu uma auditoria nos documentos referentes aos serviços supostamente prestados pelo hospital ao 38º Batalhão.

Até a morte do tenente, o imbróglio estava restrito aos limites do quartel. Internamente, uma sindicância apurava a ausência de contrato com o hospital, a partir de denúncia do próprio tenente Arthur. O major João Luiz de Almeida, destacado para presidir a apuração, declarou-se impedido de prosseguir no trabalho ao concluir que o comandante sabia da irregularidade. “Há indícios que sugerem que o Sr. Ordenador de Despesas [o comandante] tinha efetivamente conhecimento da ausência de contrato”, escreveu. Nesse caso, a sindicância teria de ser transferida para o CML. Curiosamente, até hoje o ofício não consta do inquérito.

Carlos Alberto Silva

TESTEMUNHA IGNORADA
Ex-sargento Gomes estava lá
e não foi ouvido no processo

Há mais embaraços. Arthur Carvalho estava incumbido de apurar outras irregularidades no quartel. O oficial presidiu uma investigação sobre pagamentos de pensão mantidos após a morte dos beneficiários. Tomou depoimentos de colegas e esbarrou num festival de erros burocráticos e falhas funcionais.

Todo esse emaranhado de histórias figurava secretamente no inquérito. Depois da morte do tenente, cartas anônimas chegaram a sua família, contestando a hipótese de suicídio. A mãe de Arthur, a professora aposentada Ana Romualda de Carvalho, contratou um advogado para ter acesso à investigação. Recorreu ao Superior Tribunal Militar em Brasília, que negou o pedido. O acesso só foi liberado após uma ordem da Justiça Federal. A família ainda questiona a conclusão do primeiro inquérito, bem como os amigos do tenente. Na página mantida no site de relacionamentos Orkut pelos intendentes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), onde Arthur formou-se oficial, levantou-se a suspeita: “Não pode ter sido suicídio. Ele era o cara mais tranqüilo que conheci”, escreveu um deles. Arthur era aplicado. Passou para a Aman aos 17 anos. Tinha planos de seguir carreira militar.


Também incomodada pela hipótese de assassinato, a promotoria militar pediu novas diligências e solicitou mais informações dos peritos da Polícia Civil. Em setembro do ano passado, alertou o comando do batalhão para a necessidade de se preservar o local da morte. Só que o quartel, instalado num forte construído em 1700, estava em obras para abrigar a feira de decoração Casa Cor. O banheiro já tinha sido quebrado. Todas as perícias, concluídas menos de dois meses após a morte, convergem para a hipótese de suicídio. Mas restam controvérsias. A reconstituição da morte não pôde ser feita e testemunhas que estavam perto do local onde o corpo foi encontrado não foram ouvidas no inquérito. Caso do ex-sargento Mário de Souza Gomes, que abandonou a farda em outubro depois de acusar seus superiores de perseguição. “É estranho, eu estava lá e não fui ouvido”, disse a ISTOÉ.

Ed Ferreira/AE

O episódio abriu caminho para a descoberta de outros problemas. Militares ouvidos por ISTOÉ revelaram que, no caso do 38º Batalhão de Infantaria, o tesoureiro também tem a atribuição de administrar um caixa paralelo. A contabilidade é minuciosa. Há doações de empresas privadas e créditos sem origem determinada. Os débitos aparecem relacionados a nomes de militares. O movimento é feito numa conta corrente mantida na agência 0346-8 do Banco Real, em nome do Grêmio Recreativo do Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva (NPOR). O comandante Otávio diz que o dinheiro serve para promover atividades esportivas e culturais no batalhão. Mas admite que também banca despesas do quartel, como a reforma do ginásio. De janeiro a maio de 2006, passaram pela conta R$ 49.200. O coronel não vê irregularidade, embora diga desconhecer os saques em nome de subordinados. “Disso eu não sabia”, diz. O caso, desde a morte do tenente até o que surgiu depois, segue em aberto. “A investigação está em andamento e ainda há mais diligências a fazer”, diz a promotora Adriana Santos. Na caserna, o estado é de alerta.


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