O pelotão do FMI que visita a Argentina e prepara o terreno para a chegada do chefe da missão, o economista indiano Anoop Singh, na segunda-feira 8, teria muita coisa para contar a ele se não estivesse fazendo uma marcação homem a homem nos governadores das províncias. A notícia de maior repercussão – a prisão do ex-poderoso ministro da Economia Domingo Cavallo – Singh não escapou de ler. O mundo inteiro comentou. Cavallo, liberal de 55 anos, pose de enérgico incorruptível, olhos azuis de Primeiro Mundo, ex-ministro de Carlos Menem (1989-99) e de Fernando De la Rúa (1999-2001), criador de soluções mágicas que afundaram seu país, como a paridade cambial e o “corralito”, sinônimo maroto de confisco do dinheiro da população, está na cadeia, para alegria e vingança do povo argentino (sete em cada dez argentinos aprovam a sua prisão) e pelas mesmas razões que esteve preso por 167 dias o presidente Menem: contrabando de armas para a Croácia e o Equador entre 1991 e 1995.

Os técnicos do FMI poderiam contar ao chefe Singh que Cavallo está comendo frango com arroz todos os dias e não sairá desta com a facilidade com que largou para trás o estrago que fez na economia do país, uma crise mais grave do que viveram os argentinos há 20 anos (comemorados na terça-feira 2), na guerra das Malvinas, quando a ditadura militar comandada pelo general Leopoldo Fortunato Galtieri levou a Argentina à mais desvairada aventura militar contra a potência do Reino Unido. Morreram 700 argentinos, 250 britânicos, a crise econômica encoberta pela guerra levou o país ao limite e Galtieri, que hoje vive em reclusão, provavelmente tomou um grande porre – já que a bebida sempre foi seu ponto fraco.

A crise agora – o pelotão do FMI pode ver nas ruas da outrora imponente capital – é muito mais grave. A classe média está ficando pobre, os pobres, miseráveis, fazendo qualquer coisa para matar a fome. A inflação nos três primeiros meses do ano chegou a 9,7%, dois terços da meta anual, período em que a produção de automóveis caiu 54,7%. A arrecadação tributária caiu 7,4% em março, comparada com o mesmo mês de 2001. A taxa de desemprego chega a 22%. As empresas continuam quebrando: as duas últimas são a poderosa companhia de telecomunicações Telecom Argentina, de capital franco-italiano, que anunciou na terça-feira 2 a moratória de sua dívida principal, de US$ 3,2 bilhões, e a Mastellone Hnos, dona da tradicional marca de produtos lácteos La Sereníssima, que sucumbiu a dívidas de US$ 13 milhões. Só no mês passado 148 empresas pediram concordata. E a recessão, no seu 46º mês, se agrava com a possibilidade real de menos emprego ainda.

Alívio – Para aliviar o drama que o FMI ignora, o presidente Eduardo Duhalde acaba de lançar um programa social que vai conceder um auxílio mensal de 150 pesos aos desempregados que tiverem mulheres grávidas ou filhos menores de 18 anos ou deficientes. Com a bandeira argentina ao fundo, Duhalde anunciou em rede nacional de tevê que o programa deverá ser estendido para todos os desempregados, atingindo dois milhões de pessoas até meados do ano. Para receberem os 150 pesos, os “beneficiários” deverão trabalhar quatro horas por dia em obras públicas ou empresas privadas que aderirem ao programa. O projeto será financiado com a elevação dos impostos para as exportações.

Isso se o FMI deixar. O Tesouro dos Estados Unidos considera que ainda é impossível definir um prazo para o fechamento de um acordo entre o FMI e a Argentina, ao contrário do que imaginam as autoridades locais. Considera também que é muito prematuro antecipar um final feliz para as negociações, apesar da urgência do governo argentino. “O timing das negociações será determinado pelo avanço das reformas exigidas pelo FMI”, disse Paul O’Neil, o chefão do Tesouro. Traduzindo para a vida real, só sai apoio financeiro se a Argentina se curvar de corpo e alma à cartilha dos donos do dinheiro, e não será desta vez. A lista de exigências é grande. Fontes do próprio FMI revelam, por exemplo, que uma das exigências é a de que as contas de todo o setor público, antes do pagamento de dívidas, deixe um superávit primário de 4 bilhões a 4,5 bilhões de pesos. Impossível: no ano passado, o superávit primário foi de 1,45 bilhão de pesos, enquanto as províncias tiveram um déficit de 3,3 bilhões de pesos.

Neste momento, a Argentina tem que escolher entre a ditadura do FMI
e seu rígido programa de austeridade, que enfurecerá ainda mais a população, ou afastar-se do FMI na tentativa de algo diferente. Afastar-se do FMI não seria uma tragédia. Ao contrário. Há uma respeitável corrente de economistas que considera que um novo acordo com o
Fundo aprofundaria a recessão. Para essa corrente, as prioridades dos argentinos deveriam ser aumentar os investimentos para pôr em funcionamento a capacidade ociosa da economia e adotar uma política industrial com base regional que enfatize o fortalecimento do Mercosul, em contraposição ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Apesar da gravidade da crise, a Argentina é a terceira economia da América Latina, continua produzindo anualmente uma tonelada de cereais por habitante e criando 50 milhões de cabeças de gado. E pode, se quiser, estragar a festa da Alca, operação estratégica americana
de amplo alcance que, segundo seus inúmeros críticos, tem objetivos políticos, econômicos e militares de longo prazo que só favorecem
os Estados Unidos.