No Jardim da Conquista, bairro pobre da periferia paulistana, ninguém prestava atenção quando o eletricista Antônio Pereira de Oliveira dizia, confusamente, que tinha participado de uma guerra. “Ele sempre falava nesse negócio de guerra, mas eu achava que era loucura”, lembra sua mulher, Josefa Rosendo de Oliveira. Uma noite, Antônio assistiu na tevê a uma reportagem com duas sobreviventes da guerrilha do Araguaia: Elza Monnerat e Criméia de Almeida. “Senti que aquelas duas mulheres tinham a chave para desvendar a minha história”, conta o eletricista, que só vislumbrava o passado entre brumas. “Nos meus sonhos ainda estavam o jatobá caído, com militares perto, e o córrego que a televisão também mostrou.” O eletricista era o lendário Zezinho do Araguaia, mas naquele momento ele se lembrava muito vagamente do movimento de resistência armada ao governo militar que o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) organizou, entre o começo de 1972 e o final de 1974, às margens do rio Araguaia, na atual divisa entre o Pará e o Tocantins.

Há exatos 30 anos, no dia 12 de abril de 1972, o Exército brasileiro deu início a uma megaoperação de combate aos guerrilheiros do PCdoB, que viviam em três destacamentos (A, B e C) espalhados dentro da mata. Nas semanas anteriores, homens armados haviam circulado pela região, apresentando-se como “amigos” que haviam perdido o contato com os “paulistas” – designação dada aos guerrilheiros pela população local. Avisados por “olheiros” que mantinham em pontos estratégicos, os integrantes do destacamento A tiveram tempo de se embrenhar pela floresta quando começou o desembarque. “Sabíamos que não eram amigos, mas tivemos certeza de que eram militares quando vimos os helicópteros”, lembra Criméia, que hoje é enfermeira em São Paulo. Embora tenham trancafiado dezenas de moradores da região em cadeias improvisadas, na primeira campanha os militares só prenderam um guerrilheiro: o atual candidato ao governo de São Paulo, deputado José Genoíno Neto (PT/SP), que fora incumbido de alertar o destacamento C sobre a presença da repressão.

O eletricista Antônio não se lembra se Genoíno apareceu na reportagem que tanto o intrigara, exibida em meados de 1996 pela Rede Globo. No dia seguinte, sem conseguir se concentrar em mais nada, ele deixou o trabalho para bater à porta da sede regional da emissora, no centro de São Paulo. “O repórter não concordou em reprisar a reportagem”, conta. “Ele foi gentil, mas não acreditou na minha história.” Na sequência da busca por Elza e Criméia, o eletricista procurou a então vereadora Tereza Lajolo (PT), depois de um debate. “Ela me fez um interrogatório, querendo saber do meu interesse pelas duas. Me apertou tanto que, de repente, lembrei que havia tirado a Criméia do Araguaia”, relata Antônio. Embora tenha facilitado o encontro do eletricista com Criméia, Tereza não percebeu que fora fundamental em um processo de recuperação de memória perdida. “Só me lembro de que ele estava muito ressabiado e, num determinado momento, mandei-o desembuchar”, afirma Tereza.

A partir daí, o eletricista Antônio, que a mulher Josefa havia ajudado a tirar uma certidão de nascimento como se fosse originário de São Tomás de Aquino (MG), nascido em 1934, voltou a ser o mateiro Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, quatro anos mais novo. Cearense de Capa nema, ele era secundarista em Goiânia (GO) no começo dos anos 60, quando entrou para o PCdoB. Com as perseguições surgidas depois do golpe militar de 1964, acabou despachado pelo partido para fazer treinamento militar na China. Isso porque, na época, o PCdoB havia abraçado as idéias do líder comunista chinês Mao Tsé-tung. Na volta ao Brasil, Zezinho foi enviado para o Araguaia, onde experimentados militantes, como Elza Monnerat e o ex-deputado Maurício Grabois, já estavam instalados. Segurança da Comissão Militar do partido, Zezinho funcionava como uma espécie de elo entre a mata e o resto do mundo, levando e retirando os militantes da região. Naqueles tempos de repressão generalizada, com as outras organizações políticas de esquerda sendo dizimadas na guerrilha urbana, o projeto de guerrilha rural do PCdoB era um segredo mantido a sete chaves. A última missão de Zezinho, em 1974, foi tirar o dirigente Ângelo Arroyo, ex-deputado federal, e levá-lo, junto com outro dirigente, para São Paulo. “Depois desta missão, não me lembro de mais nada”, garante. “Mas hoje me martirizo por não ter voltado para buscar os companheiros que ficaram.”

Com o fracasso da primeira campanha, o Exército recuou, para voltar
à carga em junho do mesmo ano. Na segunda investida, os soldados despachados pelo general Antônio Bandeira amargaram outro fracasso. Adaptados à mata – para onde começaram a se deslocar em meados
dos anos 60 –, os guerrilheiros passaram meses camuflados, vivendo
dos alimentos que haviam estocado em diferentes pontos da região. Depois de novo recuo, o Exército preparou-se para uma campanha
de terra arrasada, que começou em outubro de 1973, com tropas
de elite. Dos militantes que se encontravam na área, não sobreviveu nenhum para contar a história. Até bombas napalm foram atiradas
sobre a Serra das Andorinhas, transformando aquela região do sul
do Pará numa espécie de Vietnã.

Corpos sem sepultura – Um dos comandantes da guerrilha, o engenheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um negro de quase dois metros de altura, foi decapitado depois de morto. Para que nada restasse de sua fama de invencível, os militares sobrevoaram os vilarejos com o corpo dependurado em um helicóptero, como se fosse um troféu. Os restos mortais de Osvaldão e dos outros guerrilheiros jamais foram localizados, à exceção da professora Maria Lúcia Petit, cuja ossada foi encontrada em 1991 e identificada cinco anos depois. Ao final das três campanhas, dos 69 militantes do PCdoB no Araguaia, 59 foram exterminados. Estima-se que, no total, o Exército tenha deslocado dez mil homens para combater na região. “A última fase de repressão se caracterizou pela eliminação de todos os guerrilheiros, mesmo os presos com vida; e grande repressão aos moradores, como forma de impedir
a sobrevivência da guerrilha”, registra relatório de janeiro deste ano, assinado por quatro procuradores da República que investigam a
Guerrilha do Araguaia. “Os dados colecionados dão notícia de que
cerca de 70 guerrilheiros e camponeses teriam sido mortos na
soma das três campanhas.”

No decorrer das investigações, ainda em fase preliminar, os procuradores encontraram uma base militar clandestina, que monitora até hoje os moradores da região. A central da “arapongagem” fica em Marabá (PA), uma das cidades que funcionaram como quartel-general das forças repressoras. No mundo oficial, o Exército adotou uma estratégia de esquecimento similar à construída pela mente de Zezinho: os militares nunca assumiram sua participação no Araguaia, talvez na esperança de que as atrocidades que cometeram se perdessem na poeira da história. Mas, nos últimos anos, alguns integrantes da corporação começaram a relatar a parte que conhecem daqueles tempos de guerra.

Parto no quartel – A estratégia militar de esquecimento incluiu não processar pela atuação no Araguaia os poucos detidos que sobreviveram à ofensiva do Exército. Presa em São Paulo, para onde se deslocara grávida depois da primeira campanha, Criméia de Almeida foi transferida para Brasília, onde nasceu seu filho João Carlos. O pai do bebê, André, e o avô, Maurício Grabois, foram mortos no Araguaia. A foto do garoto recém-nascido, tirada por oficiais no hospital militar, é uma das poucas evidências de que ela esteve sob custódia do Estado. “Oficialmente, fiquei detida para averiguações durante cinco meses”, afirma Criméia.

Consciente do passa-borracha adotado pelo Exército, Genoíno anexou à sua defesa, num processo em que não era especificamente acusado de participar da guerrilha, uma carta que descrevia as atrocidades cometidas pelo Exército no sul do Pará. Tempos depois, em abril de 1996, o jornal O Globo publicou um dossiê guardado por um militar que participara da repressão. Lá estava uma fotografia do então guerrilheiro, algemado, junto a uma árvore. Hoje pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, Genoíno analisa a guerrilha com os olhos no passado e no futuro. “Foi um momento específico da história do Brasil em que a resistência se legitimava por causa do Estado autoritário”, afirma. “A lição que tiramos é que o caminho democrático é mais eficaz.” O tom sério se transforma ao relatar o reencontro com Zezinho. “Foi impressionante reencontrá-lo depois de tanto tempo”, diz. “Até hoje, quando me liga, ele me chama de Gera”, diz, em referência a Geraldo, seu antigo codinome.

Ao contrário de Genoíno, Zezinho é capaz de passar horas falando sobre o cotidiano da guerrilha, como se ela tivesse acontecido ontem. “A cada dia recupero novos detalhes da minha história e, quanto mais lembro, mais admiro a atuação das mulheres na guerrilha”, romantiza. “Elas davam de mil nos homens.” Um dos ícones do Araguaia é Elza Monnerat que, aos 88 anos, continua integrando o Comitê Central do PCdoB. Sempre que aparece em atos públicos, como ocorreu em meados do mês passado, no Rio de Janeiro, durante as comemorações dos 80 anos do partido, Elza é reverenciada como símbolo de resistência. Ela mesma, no entanto, não se cansa de render homenagem às antigas companheiras. “Nunca vou esquecer de Dina, uma guerrilheira destemida como poucas”, comenta, citando a carismática geóloga Dinalva Oliveira Teixeira, que morreu no Araguaia, em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

Trinta anos depois da primeira ofensiva militar no sul do Pará, continuam sendo tantos os segredos sobre a guerrilha que Maria Amélia Teles, uma das mais antigas integrantes da Comissão de Familiares de Presos e Desaparecidos Políticos, não se surpreenderia se reaparecessem personagens do passado ou se descobrissem novas vítimas. “Como o Estado brasileiro nunca esclareceu o que se passou, tudo é possível”, diz. “Além disso, não sabemos quantos foram presos entrando ou saindo da região.” Na rua Sonho por Sonho, no bairro Jardim da Conquista, onde Zezinho passou mais de duas décadas como o eletricista casado com Josefa, o filho do casal, de 24 anos, ainda tenta assimilar as informações sobre a história que desabaram sobre sua cabeça. “Acho tudo isso muito suspeito”, diz João Carlos. Sua mãe, Josefa, confidencia que, no começo, “entrou em parafuso”, mas, na sequência do processo, começou até a estudar. “Só me arrependo de um dia, durante a faxina, ter botado fogo nas anotações que o Antônio fazia quando se lembrava de alguma coisa, mas eu não sabia ler nem escrever.” De novo envolvido com as atividades do PCdoB em Goiânia, onde passa a maior parte do tempo, o ex-guerrilheiro Zezinho sonha agora construir um memorial do Araguaia em Xambioá (PA).