Ela tornou-se a primeira governadora negra do País. Em 112 anos de República, o Brasil teve três negros e apenas uma mulher eleitos para o cargo. Ao renunciar, na sexta-feira 5, para tentar chegar à Presidência, o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PSB), abriu espaço para sua vice, Benedita da Silva, entrar para a história. Embora faça parte de dois grupos de excluídos do poder político, ela não assume bradando o discurso do revanchismo. “Pretendo contar no meu governo com negros e brancos, mulheres e homens, com gente do morro e do asfalto”, promete Bené. Ela sentará na cadeira por apenas nove meses, que provavelmente serão os mais intensos de sua trajetória política. Do sucesso de sua gestão depende não só a sua permanência no cargo – ela é candidata à reeleição – como também o êxito do petista Lula no Rio.

A ascensão de Benedita acontece em meio a um tiroteio. Ela herda de Garotinho um Estado com muitos problemas e pouco dinheiro (leia quadro à pág. 28). E o pior: enfrentará tudo sem contar com o apoio incondicional de seu partido, o PT. É que alguns correligionários identificam nela um estilo populista e fisiológico. O bombardeio não a amedronta. “Gosto de desafios.” Que ninguém duvide. Benedita está acostumada a transformar limão em limonada. Da condição de negra, mulher e (ex) favelada – slogan que ela criou e transformou em bandeira –, tirou forças para chegar ao Palácio Guanabara.

Ser a primeira governadora negra é um passo importante dado por Benedita para romper com o preconceito que relega 73 milhões de brasileiros afro-descendentes à condição de excluídos. Dos 29,4% da população analfabeta, 80% é negra, segundo o IBGE. Benedita teve mais sorte: formou-se assistente social depois dos 40 anos. Mas a nova responsabilidade parece ter abalado suas estruturas. Nas duas
últimas semanas, uma crise de coluna denunciou seu estado de tensão. “Ainda mantemos o sistema herdado do período escravocrata, a primeira vez é sempre mais difícil”, afirma o antropólogo Roberto da Matta. Sob efeito de remédios, ela manteve a linha. Nem bateu boca com Garotinho nem discutiu com colegas de partido, que criticaram a aliança com o PMDB para garantir apoio na Assembléia Legislativa. “É um acordo espúrio”, alfinetou o deputado federal Milton Temer. A aliança foi defendida por Benedita para garantir a governabilidade e contou com o apoio de José Dirceu, presidente nacional do PT, que foi ao Rio para costurar acordos e tentar enquadrar os rebeldes. Os últimos dias da semana foram dedicados à escolha do secretariado, composto por representantes de minorias, como o sociólogo homossexual Cláudio Nascimento, presidente do Grupo Arco-Íris.

Mesmo levantando bandeiras defendidas pelo PT e já tendo sido eleita vereadora, deputada federal e senadora (a primeira negra), Benedita nunca foi unanimidade. Muitos não a perdoam por ter colocado o partido em algumas situações embaraçosas, como a compra superfaturada de uma banheira de hidromassagem, a contratação sem concurso de um de seus filhos e até indícios de compra de votos. “O problema é que ela é uma esfinge política”, afirma o deputado Chico Alencar (PT), um dos seus desafetos. Mas ela mostrou força nas prévias: teve 80% dos votos para se candidatar ao governo nas próximas eleições. “O PT tem a responsabilidade de me apoiar”, convoca.

Segredo – O presente recheado de vitórias ilumina o sorriso de Bené, mas, quando o assunto é o passado, seus olhos se enchem d’água. Filha da lavadeira Maria da Conceição, dona de um terreiro de umbanda, com o pedreiro José Tobias, ela teve 15 irmãos, mas só conheceu oito. Morou na praia do Pinto, favela da zona sul do Rio que foi removida pelo governador Carlos Lacerda.

Aos três anos foi para o Morro Chapéu Mangueira. Passou fome na infância e despistava o estômago com uma mistura de farinha com açúcar e um copo de água. Aos sete anos foi molestada por Adão – um amigo dos pais que durante anos morou em sua casa. “Eu queria gritar, mas tinha medo”, admitiu, depois de anos guardando segredo. Na adolescência sentia-se rejeitada pelos meninos por ser muito alta, mas chegou a ser eleita, nos anos 60, Miss Samba de Copacabana. Mais tarde, trabalhou como camelô e doméstica.

Desde que trocou a favela pelos salões do poder, a vida de Benedita mudou. Alguns hábitos, no entanto, foram mantidos. Beatriz Rodrigues, moradora do Morro dos Cabritos, é a responsável pelo seu guarda-roupa. “Bené detesta repetir roupa”, orgulha-se Beatriz, amiga da governadora há 13 anos. Seus modelos preferidos são tailleur e vestido tubo. Calça comprida, nem pensar. “Ela não usa por causa da religião e as saias são sempre na altura do joelho”, entrega. Apesar de ter crescido num terreiro, Benedita entrou para a Assembléia de Deus aos 26 anos. Evangélica, abriu mão de dançar e usar vestido curto, mas ainda faz questão de se vestir com elegância. As cores fortes e estampas coloridas no melhor estilo africano são reservadas para os tempos de campanha. Quando está no poder, prefere as cores claras.

Romance – Cozinheira de mão-cheia, ela não deixa de paparicar o marido, o ator Antônio Pitanga, mas no começo relutou em ceder aos assédios por considerá-lo mulherengo. Foi no escurinho do cinema, numa sessão do filme Asas do desejo, que o romance começou. Ser chamado de “primeiro-damo” não o incomoda: “É um posto que só eu vou assumir. Ninguém vai poder disputar porque sou o único que é marido da Bené”, brinca. Em casa, Pitanga – que atua em O clone como o malandro Tião – alimenta um prazer antigo: comer os pastéis de camarão feitos por Benedita, como faz na novela com os de Dona Jura. “Só que os de casa são feitos com amor,” derrete-se. Não é brinquedo, não. A governadora adora cantar, fazer palavras cruzadas, escrever poesia e colecionar bonecas de pano. Como o tempo anda cada vez mais curto, tem deixado de se divertir para encarar as dificuldades da política. É obrigada a despachar no trânsito e até as aulas de espanhol foram adiadas.

Às vésperas de completar 60 anos, no dia 11 de março, Benedita tentou presentear-se com uma lipoaspiração. “Meu médico não deixou, disse que estou em excelente forma”, orgulha-se. A cirurgia plástica é um dos tropeços pequeno-burgueses que petistas radicais criticam na colega. Ela dá de ombros: “Muita gente no PT faz plástica, como a Marta Suplicy.” Viúva duas vezes, mãe de dois filhos, avó de quatro netos e casada pela terceira vez, Benedita começa esta semana a viver um conto de fadas. Depois de trocar a favela pela casa onde mora em Jacarepaguá, fez as malas para mudar-se para o Palácio Laranjeiras, ao mesmo tempo que a então primeira-dama Rosinha Matheus arrumava as coisas para deixar a casa. Se não se encontraram no hall do Palácio, é certo que irão esbarrar-se nos palanques. Ambas são candidatas ao governo do Estado.

Apesar da mudança de endereço, Bené diz que não vai sumir da favela. “O Chapéu continuará sendo o lugar das festas da família”, garante ela, que está transformando a velha casa num centro cultural. Muitas de suas antigas vizinhas, no entanto, reclamam de sua atuação. “Sempre votei nela, mas acho que vou mudar meu voto nas próximas eleições”, diz Dulce de Carvalho, 35 anos, que mora no Chapéu Mangueira. Assim como Benedita, Dulce nasceu e cresceu na favela e diz que a antiga vizinha está ausente da comunidade. Críticas não faltam, mas, para quem nasceu no morro e agora tem poder para ajudar a mudar o destino de gente tão pobre quanto ela foi, Benedita pode se considerar uma mulher vitoriosa. Resta saber se esse espírito vai contagiar sua administração.