À frente da pesquisa nacional dos transgênicos, Luiz Barreto de Castro diz que o Brasil planta a soja Maradona, contrabandeada da Argentina

Os estudos científicos não apontaram evidências de que eles possam matar. Também não há provas de que sejam inofensivos. Para o bem e para o mal, o plantio e o consumo dos alimentos geneticamente modificados, os transgênicos, abre um leque infindável de possibilidades. Capazes de resistir aos inseticidas, eles representam uma alternativa de aumento na produtividade agrícola. São candidatos a resolver problemas nutricionais ao oferecer frutas fora da estação e variedades enriquecidas com vitaminas ou com menor teor de gordura. Permitem que as crianças sejam medicadas no prato, comendo carne com hormônio de crescimento ou ovo com proteínas terapêuticas. O maior fantasma dos transgênicos são os efeitos desconhecidos sobre a natureza. Um risco potencial é a contaminação de ervas daninhas, que se tornariam resistentes aos herbicidas que deveriam matá-las.

O mal da vaca louca é um exemplo emblemático da interferência irresponsável sobre o meio ambiente. Para engordar o rebanho, temperou-se a ração dos herbívoros com pedaços de carneiro moído. Os animais desenvolveram uma degeneração cerebral que levou a um abate recorde na Europa. No corpo humano, os transgênicos até agora só teriam comprovadamente desencadeado casos de alergias. Não se pode prever, no entanto, o que a alteração na dieta alimentar reserva no futuro. Os alimentos modificados pela biotecnologia são proibidos no Brasil, mas pelo menos três milhões de hectares estão tomados pela chamada soja Maradona, contrabandeada da Argentina. Produzida pela americana Monsanto, que briga na Justiça para liberar sua semente em terras brasileiras, a soja recebeu o gene de uma superbactéria, que resiste ao herbicida fabricado pela própria empresa. Com opiniões polêmicas, o chefe da unidade de Recursos Genéticos e Biotecnologia da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Luiz Antonio Barreto de Castro, 62 anos, afirma que os grandes vilões das plantações são os inseticidas. Um dos pioneiros na pesquisa pública de biotecnologia para produção de espécies resistentes a doenças, Castro acusa os alimentos sem agrotóxicos, os orgânicos, de ser uma ameaça à saúde por oferecer o risco de contaminação por bactérias. Ele conduz uma equipe de 120 pesquisadores que desenvolve feijão, batata, tomate, mamão e soja modificados. Com especializações em botânica na Universidade da Califórnia, nos EUA, e passagem de três anos pela presidência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão fiscalizador dos plantios alterados, Castro destaca que é impossível prever o impacto dos transgênicos a longo prazo. A seu ver, a única forma de testar o risco desses produtos seria colocando-os no mercado. Na prática,
eles já são consumidos desde 1995. A seguir, os principais trechos
de sua entrevista.

ISTOÉ – Quais pesquisas a Embrapa realiza com alimentos geneticamente modificados?
Castro

Montamos um laboratório de engenharia genética de plantas em 1980. O primeiro projeto foi o da transferência de um gene da castanha-do-pará para o feijão. Embora seja um alimento importante na dieta do brasileiro por ser rico em proteínas, o feijão tem deficiência de uma substância fundamental para o desenvolvimento do cérebro na infância. E a castanha-do-pará tem essa substância. A pesquisa foi interrompida porque verificou-se, nos Estados Unidos, que existiam pessoas alérgicas à proteína da castanha. Hoje trabalhamos com um tipo de feijão resistente ao vírus mosaico dourado. Ele está em fase de testes para avaliar se, depois de cozido, apresenta riscos de alergia. Há também experimentos com batata, tomate e mamão modificados, que possuem genes para combater bactérias, vírus, fungos e insetos, sem colocar em risco toda a safra. O produto mais avançado é a soja resistente a uma substância presente no herbicida RoundUp, da multinacional americana Monsanto. Em breve, teremos algodão e cacau transgênico e estudamos metodologias para aplicar a mesma técnica em animais, que produziriam substâncias de interesse econômico ou farmacológico. Em vez de tomar remédios, por exemplo, as crianças com problema de baixa estatura comeriam carne bovina enriquecida com hormônios de crescimento. É possível ainda colocar substâncias que previnam diarréia no material genético de cabras e de vacas. Em tese, a criança ficaria imunizada ao beber o leite modificado.

ISTOÉ – Que tipos de transgênicos estão à venda no mundo ?
Castro

Todo dia tem novidade. Nos Estados Unidos, existem pelo menos 600 derivados de transgênicos, como o farelo e o óleo de soja. Tanto a canola como a soja foram modificadas para diminuir o risco de colesterol. A tecnologia ainda não avançou tanto quanto é possível e trabalha-se com uma variedade limitada de espécies. As principais: soja, milho, algodão, canola, batata, abóbora e mamão. Os países que têm essas espécies plantadas para fins comerciais são Estados Unidos, Argentina, Canadá, China, África do Sul, Austrália, México, Bulgária, Uruguai, Romênia, Espanha, Indonésia, Alemanha e França.

ISTOÉ – Qual a vantagem econômica desses alimentos?
Castro

No caso da soja, os agricultores não precisam arar o terreno para o replantio. As sementes modificadas germinam no meio da palha que sobrou da colheita. Reduz-se assim a mão-de-obra para o preparo do solo. A grande vantagem está na diminuição do volume de inseticidas e herbicidas usados na safra. No algodão convencional, são necessárias cerca de 60 pulverizações com três a quatro inseticidas diferentes. No algodão transgênico, o número de pulverizações baixa para uma ou duas. A economia no custo de produção é de 35%. Os inseticidas não discriminam, matam a praga e seus predadores naturais. Quando se diminui o uso de agrotóxicos, os inimigos das pragas voltam a agir, restabelecendo o controle biológico da natureza.

ISTOÉ – O plantio de transgênicos é proibido no Brasil, mas há muita lavoura de soja ilegal.
Castro

Em razão da redução no consumo de sementes de soja convencional, particularmente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Goiás, os produtores estimam que uma área superior a três milhões de hectares (quase o Estado do Rio de Janeiro) é cultivada com soja transgênica contrabandeada da Argentina. É a soja Maradona. No Rio Grande do Sul, 60% da safra que começou a ser colhida em março provavelmente é modificada.

ISTOÉ – O sr. afirma que os transgênicos são inócuos ao ser humano e ao meio ambiente. Que provas sustentam essa tese?
Castro

O mundo todo realizou estudos para verificar possíveis efeitos negativos desses alimentos no homem. Significa que os países que decidiram comercializá-los entenderam que os estudos, que seguem protocolos internacionais, foram satisfatórios. Teremos de repetir tudo de novo? Então, a sociedade americana foi irresponsável ao liberar um produto que pode ser prejudicial. O planeta cultiva 52 milhões de hectares de transgênicos e não há um só caso comprovado de que tenham feito mal à saúde.
 

ISTOÉ – Quais os riscos de se repetir com esses alimentos o fenômeno da vaca louca?
Castro

Que a doença da vaca louca deixava a vaca louca, degenerando seu cérebro, todo mundo sabia. Não se imaginava que ela pudesse contaminar o ser humano. Foi um erro da comunidade acadêmica não ter analisado com cuidado o problema. A diferença para os transgênicos é que os genes de bactérias utilizados para gerar plantas resistentes são conhecidos há 40 anos como agentes de controle biológico naturais. E sempre foram inócuos ao homem. Não é porque se errou com a vaca louca e até com a talidomida (remédio que prevenia o enjôo nas mulheres grávidas, mas provocava má-formação nos fetos) que teremos de esperar 20 anos para liberar os transgênicos. E não adianta dizer que eles não são naturais, porque são. Todos os genes são extraídos da natureza e o homem nunca sintetizou em laboratório um gene novo. A bioquímica das proteínas que esses genes codificam também é conhecida há décadas.

ISTOÉ – Quando um gene muda de ambiente ou de organismo, ele não pode acionar funções adormecidas, imprevisíveis?
Castro

Dependendo do local onde o gene é inserido, na folha, na raiz ou na semente da planta, pode inibir outros genes e fazer com que uma característica importante deixe de ser expressa. A planta nasce com defeito. O que a gente faz? Joga fora e aproveita as saudáveis. O Brasil e o mundo já comem transgênicos há muito tempo. Os primeiros alimentos chegaram às prateleiras em 1995. Lá se vão sete anos e nenhuma notícia ruim. Todos os produtos que existem no mercado fazem mal e matam de alguma maneira. Descobriu-se que a Coca-Cola estaria supostamente contaminada com dioxina (essa substância foi empregada como arma química durante a Guerra do Vietnã). Os anabolizantes matam, os agrotóxicos matam aos milhares e nada disso é controlado.

ISTOÉ – O sr. sugere que só se retirem os transgênicos das prateleiras se eles matarem?
Castro

Fomos prudentes com os transgênicos como jamais fomos na história da ciência. Nenhuma tecnologia foi tão testada, nem a energia nuclear. Eles estão sendo testados em humanos desde que o comércio começou. Não há outra saída. Qualquer produto lançado no mercado é acompanhado por um determinado prazo para se verificar seus efeitos. O tratamento que se quer dar ao transgênico é diferente do dispensado a todo o resto. 

ISTOÉ – Há uma série de riscos potenciais que não podem ser negligenciados. O sr. poderia comentá-los?
Castro

Existem pessoas alérgicas a camarão, a soja, a leite… Às vezes aparece uma proteína alergênica, como aconteceu com a castanha-do-pará. É por isso que as proteínas dos transgênicos são comparadas a similares encontradas em outras espécies e, portanto, com as mesmas funções, para se saber se podem provocar alergia. Quanto à contaminação de plantios, por princípio não se quer que uma planta transgênica cruze com espécies selvagens porque não se sabe no que vai dar. A soja não cruza, mas o milho e o algodão sim e isso deve ser levado em conta na hora de plantá-los. Transgênicos não provocaram mal em sete anos, mas será que em 50 vão provocar? A pergunta não tem resposta. Cautela até quando? A ciência parou no Brasil por causa da moratória branca imposta pela Justiça, que há quatro anos discute a liberação da soja da Monsanto.

ISTOÉ – Há mais interesses econômicos, políticos e ideológicos do que científicos motivando essa disputa?
Castro

O transgênico não é um monstro. A Europa tem interesse em ser do contra porque não consegue competir nem com o mercado agrícola convencional, quanto mais com um produto de preço menor. Quem vai ganhar dinheiro enquanto os transgênicos estiverem proibidos são as multinacionais de agrotóxicos. O Brasil paga todo ano US$ 2,5 bilhões em inseticidas e herbicidas. A soja não foi liberada porque existe uma reação fortíssima à Monsanto pelo fato de ser uma multinacional. Nenhuma empresa que começou vendendo agrotóxico é santa, mas, se o transgênico fosse dos brasileiros da Embrapa, aposto que não seria impedido. 

ISTOÉ – Não é exagero dizer que o Brasil perde mercado por não plantar alimento alterado pela biotecnologia?
Castro

Em 2001, os plantadores de algodão do Mato Grosso reduziram em 28% a área cultivada. Não podem competir com o algodão alterado e mais barato dos americanos e chineses. Se a Justiça decidir proibir, abrirá um precedente para banir os transgênicos do Brasil. Será um desastre para a agricultura. 

ISTOÉ – Um dos atritos com os ambientalistas é quanto à decisão da CTNBio de liberar a soja da Monsanto sem solicitar estudo de impacto ambiental. Essa avaliação não é uma garantia para o consumidor?
Castro

A Constituição faculta à comissão o direito de decidir se ela quer ou não o estudo, sempre que houver potencial significativo de degradação ambiental. A interpretação é de que não há potencial de risco. Uma sentença judicial que exige o relatório de impacto ambiental é impossível de ser cumprida porque não se sabe em que ambientes o transgênico vai crescer. Os estudos só valem para uma região definida. Se amanhã alguém quiser plantar essa soja no meio do Pantanal, em região passível de degradação, o órgão de fiscalização é que vai dizer se é permitido ou não. E aí tanto faz que a soja seja transgênica ou convencional. Para a Monsanto, o estudo de impacto sobre o meio ambiente é a coisa mais fácil de fazer, mas não traz garantias. Mesmo aprovando a liberação da soja, a CTNBio propôs um monitoramento ambiental por cinco anos.

ISTOÉ – Se o plantio é proibido, por que há uma lei de rotulagem para as embalagens dos alimentos com ingredientes transgênicos?
Castro

É uma exigência do Instituto de Defesa do Consumidor. A população tem o direito de saber o que come. Se houver acima de 4% de ingredientes transgênicos na composição do produto, o rótulo tem de informar. A taxa deveria ser zero. Quem é contra os transgênicos quer um produto absolutamente inalterado. Por que esse produto está na prateleira se é proibido tem que perguntar para o Ministério da Saúde. Antes do contrabando da soja Maradona, há três anos, eu podia garantir que entre os alimentos processados no Brasil não havia alterações genéticas. Com três milhões de hectares ilegais de soja plantados, a contaminação é inevitável. É como se a plantação estivesse, como se diz, envenenada.