A casa da mineira Ana Paula Andrade, 23 anos, é um mosaico de pedaços de madeira encravado na favela Cambalacho, no bairro carioca da Barra da Tijuca, à beira de um pequeno canal que desemboca na lagoa de Marapendi. A tubulação do barraco onde mora há quatro anos com o marido, o porteiro Antônio de Almeida, 34, e os três filhos despeja esgoto in natura no fétido curso d’água, assim como os barracos vizinhos. “As crianças vivem resfriadas e com doenças de pele”, queixa-se Ana Paula. A falta de saneamento, problema comum a muitas comunidades pobres do País, se repete a poucos quilômetros dali, na abastada avenida Canal de Marapendi. Os moradores dos condomínios de classe média alta, com luxos como piscinas e circuitos internos de televisão, igualmente respiram um forte cheiro de esgoto. Silmar Carvalho é responsável pela manutenção do Costa Blanca, com 325 apartamentos, onde os moradores desembolsaram R$ 1 milhão para construir uma estação de tratamento. “Todos os condomínios fizeram isso, mas muitas estações não estão funcionando e lançam esgoto sem tratamento no canal”, admite. A consequência mais visível é a poluição das praias. A realidade da Barra, onde pobres e ricos sofrem a falta desse serviço essencial, resume a de muitos recantos do País, como mostra a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), que o IBGE acaba de divulgar. O documento revela um Brasil mergulhado na sujeira: 47,8% dos municípios não têm serviço de esgoto sanitário, 68,5% dos resíduos das grandes cidades são jogados em lixões e alagados e só 451 cidades fazem coleta seletiva de detritos.

Os brasileiros produzem todos os dias 125.281 toneladas de lixo, além dos 14,5 milhões de metros cúbicos de esgoto. A destinação inadequada desse material ajuda a explicar por que ainda estamos às voltas com males do século XIX, como a febre amarela, a hepatite, a diarréia e mesmo a dengue. Outra consequência da sujeira é a falta de drenagem, que provoca tragédias sempre que chove, como se vê em São Paulo com o transbordamento dos rios Tietê, Pinheiros e Aricanduva. As valas negras também se reproduzem pelo País, como acontece, por exemplo, em praias de Fortaleza. Por isso, o trabalho do IBGE é valioso. É bem verdade que a pesquisa, produto do empenho de mais de 500 pessoas entre entrevistadores e técnicos, não traz apenas más notícias. O levantamento, feito em 2000, indica que em alguns pontos a situação do saneamento básico no Brasil apresenta melhoras em relação ao levantamento feito 11 anos antes. De 1989 para 2000, aumentou em 10% o número de municípios servidos por esgotamento sanitário, a cobertura de abastecimento de água cresceu 2%, chegando a 97,9% das cidades, e a coleta de lixo já é feita em praticamente todos os municípios do País, ou seja, 99,4%. Em muitos itens, porém, esses avanços ficaram aquém do necessário e em alguns casos houve regressão. O aumento do volume de água sem tratamento é um bom exemplo. “Melhoramos em várias áreas, mas ainda há muitos índices negativos”, avalia a socióloga Lilibeth Cardozo, coordenadora da PNSB. Os números mostram que a falta de saneamento, comum nas comunidades pobres do interior do País, é um problema sem solução, mesmo nas grandes cidades. “Não temos motivos para comemorar”, lamenta o engenheiro Aírson Medeiros, consultor da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária, que ajudou o IBGE a analisar a pesquisa.

É assustador saber que as principais capitais brasileiras não cuidam de seus dejetos. No Rio de Janeiro, mais de 50% do esgoto coletado não recebe tratamento. Em São Paulo, o porcentual é menor, mas ainda significativo: 35%. Entre as capitais, os destaques negativos são Rio Branco, Manaus, São Luís e Belo Horizonte, que despontam como cidades que não tratam um metro cúbico sequer de seu esgoto. É isso mesmo: zero. Entre estas, a maior metrópole é a capital mineira, que coleta 435 mil metros cúbicos de dejetos por dia. Marcello Siqueira, presidente da estatal Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), afirma que, de 2000 (ano da pesquisa) até hoje, a situação mudou consideravelmente. “No ano passado inauguramos a estação do Arruda, que já faz o tratamento primário de 60% do esgoto da capital”, informa. O projeto de uma outra estação já está em licitação. Mas, enquanto não for feito o tratamento secundário, o meio ambiente de Belo Horizonte continua em processo de degradação acelerada. Os efeitos podem ser notados nas águas turvas da lagoa da Pampulha ou na sujeira que toma conta do rio das Velhas.

Contrastes – Na comparação regional, as desigualdades saltam aos olhos. A região Norte é a mais desassistida – coleta apenas 60 mil metros cúbicos de esgoto por dia, enquanto a região Sudeste coleta quase 200 vezes mais. Nem mesmo a diferença demográfica entre as duas regiões justifica esse desequilíbrio. O tratamento de esgoto não existe no Amazonas e no Acre. O Nordeste surpreende positivamente: dá tratamento adequado a 78,3% dos dejetos. O Sul, apesar de mais rico, trata menos da metade de seu esgoto. “Lá verificamos um fenômeno cultural arraigado no interior, que são as fossas sépticas”, explica a socióloga Lilibeth. No quadro geral, uma constatação alarmante: o Brasil trata apenas um terço do esgoto produzido.

Para justificar essa defasagem, os responsáveis pelo saneamento reclamam da falta de recursos. Gustavo Sampaio, presidente da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), estima que Pernambuco precise de R$ 2,5 bilhões para chegar a 99% de abastecimento e, pelo menos, 40% de coleta de esgoto. Mas vai ter este ano apenas R$ 300 milhões do governo estadual. Sampaio estima que o Brasil precisa de R$ 80 bilhões para resolver o problema. “Os políticos não encaram o saneamento como prioridade porque as obras não têm visibilidade”, acredita ele. “Estamos órfãos de investimentos. Das 26 empresas estaduais de saneamento, pelo menos 20 estão no vermelho e sem a menor perspectiva de conseguir recursos.” Há exceções. A Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), que tem 60% de participação do Estado e 40% da iniciativa privada, passou a ser a empresa do setor mais lucrativa do País depois que equilibrou suas finanças. Saltou de um prejuízo de R$ 48 milhões em 1995 para um lucro de R$ 152 milhões em 2001 e anuncia a implantação do maior projeto de saneamento do Brasil. “Essas companhias têm modelos arcaicos que geram perdas e impedem a ampliação dos serviços. Não conseguem investimentos porque não podem garantir o pagamento”, critica Carlos Afonso de Freitas, presidente da Sanepar.

Modelo – A destinação do lixo é outro sério problema carente de solução, já que quase 70% dos resíduos produzidos nas cidades com mais de 200 mil habitantes vão parar em lixões e alagados. É o caso de Santana do Parnaíba, a cerca de 50 quilômetros da capital paulista, onde os restos recolhidos no vazadouro do bairro de Vila Esperança dão sustento a 60 famílias de trabalhadores. Ali, a prefeitura está tentando implantar um projeto de coleta seletiva e reciclagem. No ano passado, foi criada a Associação dos Catadores Autônomos de Materiais Recicláveis da Vila Esperança (Avemare). O projeto ainda está no início e a situação de trabalho dos catadores em Santana do Parnaíba ainda é subumana. Urubus, moscas e cachorros vira-latas dividem o terreno com cerca de 60 pessoas, que se sustentam única e exclusivamente da venda dos restos. “Não vou parar de trabalhar com lixo para procurar outro emprego. Só se for para ser modelo, que é o meu maior sonho”, garante Iracilda Alves da Cruz, uma bela jovem de 18 anos que cata lixo desde os 11. Ela e a mãe, Iraci, moram há sete anos na cidade. O lugar é um depósito a céu aberto cercado de barracos. No ano passado, foram instalados grades e portões em volta do terreno. “Agora só trabalha quem está cadastrado. Antes era um sufoco, entrava todo mundo e tinha briga, tiros…”, diz Iraci, que sempre teve a ajuda dos três filhos para catar lixo. Há um ano, porém, a prefeitura proibiu menores no lixão. Ela e a filha Iracilda ganham, cada, cerca de R$ 200 mensais.

O presidente da Avemare, Dirceu Pereira de Amorim, 30 anos, é um dos mais antigos do vazadouro: está lá há 18 anos. “Quero que meus filhos estudem para ter uma vida melhor do que a minha. Achar serviço está muito difícil hoje em dia”, afirma. Dirceu diz que quando chegou no bairro não havia nenhuma organização no depósito. “Antes era uma bagunça, chegava quem queria, tinha criança catando lixo.” Se o trabalho infantil é coisa do passado no lixão de Vila Esperança, a situação no resto do País é diferente. São menores de 14 anos 22% dos 24.340 catadores identificados pela pesquisa, que revela outros dados vergonhosos. A qualidade da água que vai para as casas dos brasileiros também preocupa – e muito. Surpreendentemente, aumentou o volume de água sem tratamento: representava apenas 3,9% em 1989 e subiu para 7,2% em 2000. “O crescimento no abastecimento não foi acompanhado pela infra-estrutura para garantir a qualidade da água”, explica Lilibeth.

A PNSB mostra que não é correto creditar a sujeira nacional exclusivamente ao governo ou às empresas de saneamento e limpeza. Nos municípios com 500 mil a um milhão de habitantes, o porcentual de lixo público (jogado na rua) é de 25%. “É um volume muito alto e mostra a falta de educação da população, que joga vasos sanitários, sofás e outros objetos do tipo nas vias públicas”, avalia o engenheiro José Henrique Penido Monteiro, assessor da Comlurb, que atuou como consultor na PNSB. A solução seria a realização de campanhas permanentes de conscientização, opina Monteiro. Para os problemas de responsabilidade do governo, as sugestões são muitas. “É preciso abandonar a idéia fixa de fazer essas dispendiosas estações de tratamento e implantar parques de tratamento de resíduos que vão transformar o esgoto em água limpa e adubo. A reciclagem é a solução”, ensina o engenheiro ambiental Adacto Ottoni, coordenador do curso de pós-graduação de engenharia ambiental da Uerj. “O esgoto pode se transformar em riqueza”, acredita. Enquanto esse projeto é apenas um sonho distante, a população sobrevive tapando o nariz em meio a condições precárias de saneamento. Para o professor Ottoni, a diferença entre o sonho e a realidade tem um nome: “Vontade política.”

Arte no lixo

Somente o toque do artista poderia transformar o lixo em objetos lúdicos e decorativos. Nos últimos anos, uma grande quantidade de artesãos passou a trabalhar com matéria-prima coletada nos vazadouros. Há de tudo: bolsas, quadros, mandalas, maquetes e até roupas. Esse tipo de criação tem a dupla vantagem de preservar o meio ambiente e gerar renda. É o que acontece em projetos como o desenvolvido pela Prefeitura de Piraí (RJ), que apóia uma cooperativa de 20 produtores de objetos decorativos feitos a partir de retalhos de cortina, tubos de PVC e peças de automóveis. “Fomos premiados pela Fundação Getúlio Vargas e o projeto vai receber apoio do BNDES”, comemora Maria Dalva Ferreira, chefe da Divisão de Cultura da prefeitura.

As iniciativas se multiplicam. A confecção Gondwana, de Espírito Santo do Pinhal (SP), transforma garrafas plásticas em fios de tecidos. Em Rio Branco (AC), os estudantes do projeto Eco da Arte aprendem a reciclar papel e transformam o lixo em pastas de papelão e folhas de papel. No Rio de Janeiro, o Reciclarte ensina moradoras das favelas de Jacarepaguá a fazer artesanato com material reciclado. Apesar de tantas criações, a colaboração dos artistas para a reutilização do lixo não faz diferença considerável na reciclagem. O destaque continua sendo a coleta de latas de alumínio. São cerca de 100 mil toneladas por ano, em torno de 80% das embalagens que chegam ao mercado. Impulsionados pelo desemprego, os catadores fazem do Brasil um dos países com maior quantidade de latas recicladas.