"Senhores juízes, autoridades políticas e religiosas, fui obrigado a suportar esta penosa situação durante 29 anos, quatro meses e alguns dias. Me nego a continuar fazendo-o por mais tempo. Como podem ver, ao meu lado tenho um copo de água contendo uma dose de cianureto de potássio. Quando a beber, terei renunciado – voluntariamente – à propriedade mais legítima e privada que possuo, quer dizer, meu corpo. Terei me libertado de uma humilhante escravidão – a tetraplegia.” Essas palavras claras e serenas de um suicida não foram deixadas numa carta-testamento. Estão numa fita de vídeo de 15 minutos, que mostra a lenta agonia de um homem imóvel numa cama, sob uma manta branca. Cinco minutos dela provocaram emoção ao serem exibidos no telejornal noturno do canal de televisão espanhol Antena 3, em março de 1998. Sua reconstituição encerra o filme Mar adentro (Mar adentro, Espanha/França/Itália, 2004), em cartaz nacional na sexta-feira 18, drama dirigido pelo chileno radicado na Espanha Alejandro Amenábar, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira e o grande concorrente ao Oscar na mesma categoria, sobre a luta do tetraplégico espanhol Ramón Sampedro para ter uma morte assistida. Javier Bardem, melhor ator no Festival de Veneza, encarna de forma assombrosa o ex-marinheiro galego que passou metade de sua vida sobre uma cama, depois de um acidente ao mergulhar de uma rocha numa praia, sofrimento relatado por ele em dois livros – Cartas desde el infierno, de 1996, e o póstumo Cuando yo caiga, de poemas.

Revelar o final de Mar adentro não lhe tira a força. Trata-se de uma história conhecida, que movimentou os debates sobre a eutanásia há sete anos, quando, auxiliado por 11 amigos, Sampedro conseguiu finalmente realizar sua vontade. Ciente de que a legislação sobre o direito de morte pode mudar a qualquer momento, Amenábar preferiu não se deter muito nos aspectos jurídicos, religiosos e metafísicos da questão. Admitiu até que Mar adentro possa ser visto como uma história de amor, já que mostra a paixão de duas mulheres pelo tetraplégico – a operária Rosa (Lola Dueñas) e a advogada Julia (Belén Rueda). E isso o torna mais leve, não menos triste. Na vida real, Sampedro era um sedutor e vivia rodeado de admiradoras. Chegou a contar seis que estariam dispostas a ajudá-lo a se matar. Apesar do humor do personagem, que tem sempre na ponta da língua uma tirada sardônica para a compaixão dos que o rodeiam, Amenábar por pouco não escorrega no lacrimogêneo.

Conhecido por Os outros, horror gótico estrelado por Nicole Kidman, o diretor chileno se revela, aos 32 anos, um cineasta que sabe lidar com os sentimentos da platéia, equilibrando-se naquela linha tênue que, se rompida, significaria o fiasco total. Para tanto, optou por focar a história de Sampedro pouco antes de sua morte, sem recorrer demasiado ao seu passado. Suas reminiscências só aparecem por meio de declarações à advogada que está cuidando de seu caso, a já citada Julia, vítima de uma doença degenerativa e também defensora da morte assistida. Ao omitir o processo que leva o tetraplégico a decidir pela morte, Amenábar corre o risco de sonegar informações importantes ao espectador. Mas as passa visualmente, ao deixar ver, por exemplo, a estante de livros de Sampedro, as engenhocas inventadas por ele para escrever com a boca, sua caixa de poemas, sua paixão pela ópera. Ou seja, em três décadas de imobilidade ele teve tempo suficiente para refletir sobre sua condição. “Minha mente é a única parte de meu corpo que ainda está viva”, dizia.
    

Esta declaração do personagem real parece ter guiado tanto Amenábar quanto Javier Bardem, que consegue uma interpretação magistral usando apenas os recursos do rosto. “Só podia mover a cabeça, os olhos e o pescoço. Se mexia o resto do corpo, cortávamos e filmávamos de novo”, contou Bardem numa entrevista. Outra dificuldade foi a maquiagem para envelhecer cerca de 20 anos, um processo diário de cinco horas comandado pela inglesa Jo Allen, a mesma que colou aquele nariz horroroso em Nicole Kidman para fazê-la idêntica a Virginia Woolf, em As horas. Desta vez o resultado faz jus até à indicação ao Oscar, perfeccionismo que casa bem com o do ator de 35 anos, cuja velhice artificial só o fez parecer ainda mais com o Anthony Quinn de personagens memoráveis. Tivesse ficado apenas no detalhismo, Bardem teria oferecido um retrato fiel, mas sem vida, do personagem. Felizmente, ele avançou na compreensão do seu universo. Como ele achou o tom é o tipo de pergunta que os grandes atores devem se fazer sempre.