Ricardo Magela Cardoso tem 19 anos e recorda-se com detalhes de um episódio ocorrido no final de 1993. Seu pai, um alcoólatra morto em outubro do ano passado, chegou no barraco em que viviam na favela do Lixão, na periferia paulistana, acompanhado de outro homem. Eles queriam a carteira de identidade, o CIC e a assinatura de sua mãe, a empregada doméstica Geralda Magela. Ela se recusava a entregar os documentos e a assinar os papéis. Depois de uma acalorada discussão, Geralda foi forçada a ceder, com a promessa de que ganharia algum dinheiro. Quase nove anos depois, a cena presenciada por Ricardo representa o mais novo fantasma a assombrar Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo (1993 a 1996), e pode ajudar a desvendar um enigma que desafia o Ministério Público paulista: descobrir onde foi parar o dinheiro do superfaturamento da avenida Águas Espraiadas. A obra carrega o rótulo de rua mais cara do planeta e, em valor por quilômetro construído, só perde para o Canal da Mancha, um túnel submarino que liga a Inglaterra à França. Ao assinar os papéis, Geralda e seu marido constituíram oficialmente a Jatobá Esquadrias de Madeiras Ltda. Uma empresa que existiu apenas no papel, mas movimentou pelo menos R$ 2,4 milhões entre fevereiro e setembro de 1994. A dinheirama saía dos cofres da Mendes Júnior Engenharia S.A., principal empreiteira responsável pela construção da avenida, que recebia notas fiscais de fornecimento de material emitidas pela Jatobá. O dinheiro, porém, voltava para a Mendes Júnior dias depois,
em cheques emitidos pela Jatobá. Apesar da milionária movimentação financeira da Jatobá, Geralda e seu filho Ricardo continuam morando
na favela, em um barraco minúsculo que não tem nem televisão.
“Nunca vimos a cor do dinheiro prometido, não sei o nome do homem
que levou os documentos de minha mãe, mas sou capaz de reconhecê-lo”, diz Ricardo.

Cheque em branco – Apenas em um dos negócios já documentados no Ministério Público, a Jatobá teria vendido à Mendes Júnior 700 pranchões de peroba, por R$ 14 milhões (em valores da época), conforme a nota fiscal número 512 de 23 de março de 1994. No dia seguinte, a Jatobá devolveu para a empreiteira o cheque número 3.077 do Bradesco, no valor de R$ 12,6 milhões (em valores da época). É muito provável que o cheque tenha sido preenchido na própria sede da Mendes Júnior. O Ministério Público já ouviu Joel Guedes Fernandes, ex-caixa da empreiteira, em duas ocasiões. Ele não só afirmou que assinava as ordens de pagamento da Mendes Júnior como confessou que costumava preencher cheques já assinados de empresas que em tese prestavam serviços à construtora. Além da Jatobá, os promotores investigam a participação de pelo menos mais seis empresas no esquema de triangulação que propiciou o superfaturamento da avenida Águas Espraiadas. De 20 pessoas possivelmente envolvidas com o esquema e procuradas até a semana passada, só cinco foram localizadas, pois a maioria dos endereços era falsa.

Uma das pessoas localizadas, o vendedor Ângelo Tomacelli, ficou surpreso ao ser convocado a prestar esclarecimentos ao Ministério Público. Tomacelli assegura que nunca manteve contatos com a Mendes Júnior e jamais trabalhou em qualquer atividade que tivesse relação com a construção da avenida de Maluf. Seu nome, no entanto, figura como sócio da Ualuná Fábrica de Lubrificantes, uma das empresas subcontratadas pela Mendes Júnior para a construção da Águas Espraiadas. A experiência empresarial de Tomacelli se resume a dez anos de sociedade na Centerfull, que não é do ramo da construção civil. Um outro sócio da Ualuná seria o engenheiro químico Amauri Martins Barbieri, que vive na Grande São Paulo. Procurado por ISTOÉ, ele confirma que a empresa foi aberta em nome dele, em 1994. Admite, porém, que não passava de um “laranja” da Ualuná. “Apenas emprestei meu nome para um amigo, Roberto Metzner, que tinha problemas fiscais”, lembra. Na condição de sócio fictício, teria ficado um ano na empresa e nesse período garante que não manteve nenhuma relação com a Mendes Júnior. “Soube que em 1996 uma empresa italiana comprou a empresa, mas a Ualuná continuou no mercado. Era usada para a emissão de notas e cheques para a Mendes Júnior.”

Falsos contratos – Os promotores já descobriram que, além da Ualuná, há outras empresas que realmente existem, mas os serviços prestados na construção da avenida são peças de ficção. É o caso da Planicampo Terraplanagem, que atua com muitas empreiteiras em grandes obras privadas e públicas. Subcontratada pela Mendes Júnior para trabalhar na Águas Espraiadas, recebeu por serviços jamais realizados. Pelo contrato, a empresa deveria colocar na obra de 70 a 80 caminhões. Na prática, colocou apenas seis. O mesmo contrato diz que a Planicampo deveria disponibilizar de 20 a 30 máquinas de terraplanagem para o serviço da Mendes Júnior. Na obra, só apareceram cinco. “O resultado dessa matemática maluca é que as notas emitidas para a empreiteira eram, na prática, 90% superiores ao serviço efetivamente realizado”, diz o promotor Sílvio Marques, um dos responsáveis pela investigação. O Ministério Público dispõe ainda de uma série de cheques emitidos pela empresa para a Mendes Júnior.

Agora o desafio do Ministério Público é saber o que foi feito do dinheiro que sangrou dos cofres municipais para a Mendes Júnior, de lá foi diluído para subcontratos fantasmas e depois retornou à empreiteira. Na terça-feira 19, os promotores receberam um sinal verde para a elucidação do mistério. O juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública, Luís Paulo Aliende Ribeiro, decretou, liminarmente, a quebra dos sigilos bancários de 22 pessoas físicas e jurídicas supostamente envolvidas no esquema. O período de análise das contas é de 1993 a 1998. Com esses dados, os promotores poderão ou não confirmar uma versão explosiva para o destino final dos recursos. Em depoimento prestado ao Ministério Público, Simeão Damasceno, ex-diretor administrativo da Mendes Júnior, afirmou que, depois de voltar para a empreiteira, o dinheiro era repassado ao “pessoal do Maluf”. Damasceno, que está sendo processado pela Mendes Júnior por tentativa de chantagem, não esconde sua participação na falcatrua.

“Cheguei a entregar pessoalmente parte desse dinheiro na casa de Reynaldo de Barros, que foi secretário de Vias Públicas. Fiz diversas operações com doleiros. Boa parte desses dólares era acomodada em caixas de uísque e bombons que eram dadas de presente aos agentes enviados por Maluf”, disse a ISTOÉ. O ex-prefeito, por sua vez, nega todas as acusações e garante ter ficado “muito alegre” com a quebra de seu sigilo bancário. “Nunca descobriram nada contra mim nem vão descobrir agora”, afirma. A Mendes Júnior prefere não se manifestar sobre o assunto. Por enquanto, uma boa parte do depoimento de Damasceno foi confirmada na prática. Resta saber se, depois da descoberta das empresas e dos serviços fantasmas, a quebra do sigilo bancário vai confirmar o destino do produto do superfaturamento. Em caso positivo, o Ministério Público estará a um passo da dinheirama existente no Exterior que supostamente pertence ao ex-prefeito.