A feroz carnificina que vem cada vez mais engolfando a Palestina e Israel pode não fazer sentido para as sensibilidades mais civilizadas. “É uma loucura”, na classificação de Kofi Annan, o secretário-geral da ONU. Mas há método nesta suposta loucura. A violência é cacife na mesa de futuras negociações: os massacres são usados como ficha de barganha para concessões do oponente. Pegue-se o exemplo da incursão ao território palestino na terça-feira 12, a maior operação militar israelense desde a invasão do Líbano, em 1982. O primeiro-ministro Ariel Sharon, que comandou a primeira invasão e ordenou esta última, tratou agora de ganhar terreno antes das esperadas concessões que será obrigado a fazer diante de novas investidas americanas por um cessar-fogo. O vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, estava iniciando um périplo de 12 dias pelo Oriente Médio para pedir apoio aos países da região numa futura guerra ao Iraque. Sharon sabia que Washington cederia à pressão dos países árabes para que se resolva a questão palestina antes de qualquer ataque a Saddam Hussein.

Deste modo, os tanques israelenses rolaram pela Faixa de Gaza e Cisjordânia na tentativa de causar o maior dano possível à guerrilha palestina, antes de qualquer conversa sobre o fim das hostilidades. O inevitável recuo desta força-tarefa de 20 mil soldados israelenses entrará também como suposta concessão de Israel. Mas, para os radicais palestinos, a agressão funciona igualmente como moeda corrente. Ao mesmo tempo que sua capital Ramalá e campos de refugiados na região eram invadidos pelas tropas de Sharon, os ataques à população civil israelense continuavam mostrando que as reservas de brutalidade palestina também são inesgotáveis. O resultado imediato, e parcial,
neste jogo de horrores: 200 palestinos e 55 israelenses mortos em apenas três dias.

Estado palestino – Outra consequência desta carnificina foi o ineditismo da aprovação, na terça-feira 12, de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que pede explicitamente a criação de um Estado palestino, ainda que reafirme os direitos de existência e segurança de Israel. Várias outras propostas semelhantes já haviam sido colocadas no papel timbrado da ONU no passado, mas todas essas tentativas de reconhecimento da nação palestina foram sistematicamente vetadas pelos EUA. A novidade agora é que Washington finalmente colocou seu peso por trás da resolução: além do jamegão do embaixador americano, o documento teve também sua autoria parcial. O enviado especial à região, Anthony Zinni, declarou na sexta-feira 15, depois de encontar-se com o ministro israelense Shimon Peres, que há chances de um cessar-fogo. Mas nas duas vezes em que a administração George W. Bush falou em reconhecimento do Estado palestino a motivação era a guerra. Na primeira vez, quando os EUA buscavam criar uma coalizão para invadir
o Afeganistão, o reconhecimento palestino foi colocado à mesa de negociações. Agora, com os preparativos para atacar o Iraque,
volta-se ao assunto.

A percepção de que o reconhecimento de um Estado palestino seria usado como forma de pagamento dos americanos aos árabes serviu de combustível aos tanques israelenses na invasão da semana passada. Mas não é apenas a política externa que faz rufar tambores e soar os clarins para as divisões de Israel. O general Sharon, como sempre, mantém vigilância sobre o front interno. E no território doméstico ele enfrentava um motim. Uma semana antes da invasão à Palestina, a extrema direita israelense foi às ruas protestar contra o que considerava, pasmem, falta de ações duras do governo. A revolta naquela que é considerada a guarda pretoriana do premiê culminou com a defecção de dois membros de seu ministério e o enfraquecimento da coalizão que sustenta o governo. “Só mesmo a direita de Israel para achar que Sharon não é linha-dura o suficiente”, reclamou para ISTOÉ a parlamentar trabalhista Collete Avital. De todo modo, correndo o risco de ficar na dependência exagerada da boa vontade dos trabalhistas, Sharon partiu para o ataque na tentativa de pacificar seus correligionários históricos.

Entre os palestinos a situação não é menos patética. O que se chama de “Autoridade Palestina” é tudo, menos autoridade. Arafat não consegue colocar cabresto nos grupos radicais Hamas e Jihad Islâmica. “Ele nem sequer consegue dominar seu partido, a Fatah”, diz o parlamentar israelense do Likud Eli Cohen. “O Tanzin (braço armado jovem da Fatah) é quem diz o que Arafat deve fazer”, assegura Cohen. Na expectativa de que o esforço diplomático americano desembocará na mesa de negociações, os radicais palestinos soltaram seus franco-atiradores e homens-bomba para dar provas concretas de que não querem um cessar-fogo. “Para o Hamas e outros grupos palestinos, a violência só deve acabar quando Israel for empurrada para o mar”, diz Cohen. A impressão é dividida também por ninguém menos que Jibril Rajoub, chefe da agência de Segurança Preventiva da Palestina. “Sou absolutamente contrário aos ataques a civis em Israel. Sempre fui. Acho até contra-produtivo. Mas infelizmente alguns patrícios não entendem isso”, disse Rajoub. Ele sabe
o que fala: é irmão e oponente do sheik Nayef Rajoub, um dos líderes
do Hamas.

O problema é que os palestinos aprenderam com o sucesso das ações do grupo radical pró-iraniano Hizbolá no sul do Líbano. A campanha movida contra as tropas de ocupação israelenses naquela região é tida como vitoriosa. Nos meses depois da retirada de Israel, em 2000, os xiitas do Hizbolá penetraram na Faixa de Gaza e Cisjordânia, fizeram um pacto com os rivais históricos sunitas do Hamas e da Fatah e passaram a prestar assistência militar e a promover ações coordenadas. “As estratégias guerrilheiras dos palestinos melhoraram muito nos últimos 17 meses. Repare como nesta invasão israelense eles evitaram o confronto direto com as tropas e optaram por poupar seu arsenal”, diz Cohen. “A tática preferida agora é a da emboscada, do ataque-surpresa e da guerra sem limites”, lembra o parlamentar do Likud. Já foi observado que a diferença entre as baixas palestinas e israelenses nesta guerra suja diminuiu muito. Nos 17 meses da primeira intifada (1987-1989), havia 25 palestinos mortos para cada israelense; nos 17 meses da segunda, a relação é de três palestinos para um israelense. O problema é que cada vítima é vista sob luzes diferentes em cada lado da tragédia. Um palestino morto é mártir e herói nos territórios ocupados. Um israelense caído transforma-se em peso político cada vez mais insustentável para o governo de Sharon.

Saddam na mira de Tio Sam

Ao mesmo tempo que explodiam construções em Ramalá, os petardos israelenses também demoliam a incerta engenharia diplomática que os americanos tentavam erguer. Dick Cheney, o vice-presidente dos EUA, estava em Amã, a capital jordaniana, para tentar convencer o rei Abdulá a apoiar investidas militares de Washington contra o Iraque. O timing desta visita, que inclui vários países da região, não poderia ter sido pior. Abdulá mostrou a Cheney que não poderá haver guerra contra Bagdá enquanto não houver paz nos territórios ocupados. De todo modo, o Pentágono deixou vazar que o ataque ao Iraque pode vir até outubro ou novembro. Já não se discute mais se os EUA devem ou não abrir fogo contra Saddam Hussein: a dúvida é quando e com quem essa artilharia começará. Corre-se o risco de que esta seja uma campanha solitária. O Reino Unido, tradicional aliado, está hesitante, enquanto a União Européia, a Rússia e a China são ainda mais firmes contra esses planos. Mas o governo George W. Bush, animado com a rápida vitória no Afeganistão, está decidido a derrubar o regime iraquiano – com ou sem suporte internacional.