A empresa que ajuda crianças e adolescentescarentes ajuda a si própria, diz o presidenteda International Youth Foundation, David Bell

O inglês David Bell, 55 anos, tem uma carreira profissional impecável. Formado em jornalismo, passou dois anos estagiando em uma pequena publicação antes de ingressar no Financial Times, o mais prestigiado jornal de finanças do mundo. Nunca mais saiu de lá. Passou por todos os postos possíveis até atingir o topo da redação, ao assumir a função de editor-chefe, em 1985. Oito anos depois, encerrou sua carreira de jornalista para virar um homem de negócios, assumindo o comando do Grupo Financial Times. Hoje, Bell acumula a presidência do conselho de administração do jornal com a diretoria de recursos humanos do Grupo Pearson, um colosso de mídia que, além do Financial Times, é dono de várias editoras de livros (entre elas a famosa Penguin) e de um faturamento anual de US$ 6,8 bilhões.

Não bastasse a invejável escalada profissional, Bell ainda arrumou tempo, durante a vida, para se dedicar a outras nobres atividades. Entre os vários cargos eméritos que ocupa, o executivo é patrono de uma orquestra, membro do Conselho do Royal National Theatre e participa do conselho de algumas outras empresas britânicas. Mas o que mais motiva Bell é o cargo de presidente do Conselho da International Youth Foundation (IYF), uma organização não-governamental com presença em mais de 60 países. Pelas contas da própria entidade, mais de 26 milhões de crianças e adolescentes já se beneficiaram dos programas bancados pela IYF e suas parceiras. São coisas como uma escola de tecnologia na Palestina, um projeto de introdução à leitura no Brasil, um de preparação de professores na Índia, outro de ensino de mecânica nas Filipinas… Enfim, onde há jovens precisando de algo, a IYF está presente de alguma forma. E, se um projeto dá muito certo em algum lugar, ele é exportado para outros países.

A questão da infância não é das menores. “Resolver os problemas da infância e da adolescência é o maior desafio do mundo hoje”, afirma o executivo. Pragmático como um bom jornalista, Bell aposta nos projetos simples e eficientes para combater as mazelas infantis. “Precisamos de programas em que os resultados sejam mensuráveis.” Quando veste a farda de homem de negócios e sai em busca de apoio financeiro para a causa, Bell adequa o discurso ao mundo corporativo. “As crianças são os consumidores do futuro. Doar não é fazer caridade, mas defender o próprio interesse, o próprio mercado consumidor”, afirma. Cuidar das crianças, enfim, é um negócio de longo prazo. E tirar dinheiro das grandes corporações tem sido mais difícil nos últimos tempos com a crise global, admite Bell. A situação brasileira não o preocupa, afinal eleições causam turbulência em qualquer parte do mundo. Mas os escândalos corporativos nos Estados Unidos o fazem apostar que a crise se estenderá, no mínimo, até o fim deste ano.

No fim de semana passado, Bell teria pela frente uma corrida agenda em São Paulo, cidade escolhida para sediar uma das três reuniões anuais do conselho da IYF. Por aqui, ele visitaria projetos desenvolvidos pela Fundação Abrinq pelos Direitos das Crianças, a parceira brasileira da entidade, na periferia de São Paulo. Dias antes de embarcar para o Brasil, Bell concedeu, por telefone, a seguinte entrevista:

ISTOÉ – Por que o Brasil foi escolhido para sediar uma reunião do conselho da fundação?
David Bell

Nós fazemos três encontros por ano. E, pelo fato de sermos uma instituição internacional, gostamos de nos movimentar entre diferentes localidades do mundo. No Brasil, temos uma ótima parceira, a Fundação Abrinq pelos Direitos das Crianças. Ela fez muitos progressos nos últimos anos. Será uma chance de vermos alguns projetos e trabalhos que estão em andamento. O Brasil é um país muito grande, com várias questões a respeito da infância e juventude. Por conta de tudo isso, estaremos por aí.

ISTOÉ – O Brasil será privilegiado nas discussões pelo fato de ser a sede do encontro?
David Bell

Claro, haverá uma atenção especial aos problemas brasileiros. Vamos visitar alguns projetos na periferia de São Paulo e ver como o trabalho da Abrinq está indo. Teremos um tempo muito corrido.

ISTOÉ – Qual é a filosofia de trabalho da International Youth Foundation?
David Bell

Levamos em conta que metade da população mundial tem menos de 25 anos. E 90% dessa metade é pobre ou muito pobre. O desafio que o mundo tem de encarar é o de tentar encontrar educação, empregos e oportunidades para esse número enorme de pessoas. Então, trabalhamos com a premissa de que há programas ao redor do mundo de apoio a jovens e crianças muito bem-sucedidos. Uma das coisas que nós fazemos é buscar conhecer esses projetos, dar publicidade a eles e tentar convencer outros países a adotarem algo semelhante. E também temos as fundações parceiras, como a Abrinq no Brasil, em cerca de 60 países do mundo. Nem todos esses países são emergentes. Temos trabalhos em andamento nos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido… Acreditamos que os problemas envolvendo crianças e adolescentes é comum aos países mais e menos desenvolvidos.

ISTOÉ – O sr. trabalha junto a projetos desse tipo há anos. Qual é a melhor experiência que o sr. já conheceu?
David Bell

Bem… são vários. Vão desde programas para crianças de rua em Bangcoc a projetos de apoio a crianças alcoólatras em Dublin. Ou mesmo um programa para crianças palestinas no Oriente Médio. Todos recebem nosso apoio. São apenas três exemplos.

ISTOÉ – Há uma característica única entre eles?
David Bell

A característica única é: são programas simples que funcionam realmente. Em projetos desse tipo, conseguimos medir o resultado obtido. No Oriente Médio, conseguimos medir quantos jovens aprendem a lidar com a informática e arrumam emprego na área em um programa de ensino tecnológico. São projetos desse tipo que buscamos.

ISTOÉ – A população de crianças de rua no mundo dobrou nas últimas décadas. Hoje, segundo dados da própria fundação, são 250 milhões nessa situação. O que levou a essa tragédia?
David Bell

Essa é uma grande questão. Basicamente, aconteceram duas coisas: os cuidados básicos de saúde têm melhorado no mundo. Então a mortalidade tem caído, poucas pessoas têm morrido. A epidemia de Aids, que é um completo pesadelo, tem freado um pouco esse processo. Mas, em geral, há uma melhora sensível, pequena mesmo, no atendimento médico ao redor do mundo, combinada com um grande movimento de pessoas em direção às cidades. Mais e mais pessoas estão deixando as áreas rurais rumo às cidades. É um fenômeno que acontece na Cidade do Cabo (África do Sul), no Rio de Janeiro, em Jacarta (Indonésia), em Bangcoc (Tailândia), em Calcutá (Índia)… Há um constante movimento de pessoas em direção às grandes cidades, onde as condições de vida são muito piores do que no interior. Isso põe uma grande pressão na estrutura familiar e tende a deixar mais e mais pessoas sem lar. Acho que é uma situação que ocorre claramente no Brasil…

ISTOÉ – Em quais países ou regiões é mais crítica a situação das crianças e dos adolescentes?
David Bell

É difícil dizer, mas eu arriscaria a Índia, partes da América do Sul e partes da Ásia – não a China, mas Tailândia, Indonésia. Nessas três regiões há grandes movimentos em direção às cidades e menor controle de trânsito. É possível dizer que na China há um controle mais estrito de movimento, então o problema é menor do que, por exemplo, na Índia, na Tailândia ou no Brasil. Nessas regiões, as grandes cidades estão crescendo, crescendo, crescendo… Na China, não.

ISTOÉ – Uma criança nascida hoje tem de ter acesso a que para crescer bem e se tornar um adulto de sucesso?
David Bell

A criança precisa, acima de todas as coisas, de uma pessoa irracionalmente comprometida com o sucesso dela. É a coisa mais importante. Não é preciso nem um casal, o que seria melhor, obviamente. Mas apenas uma pessoa é o suficiente, é o ponto de partida. Além disso, a criança precisa de um lugar para dormir, educação e cuidados médicos básicos. Há cinco lugares no mundo em que você pode achar uma criança: em casa, na escola, no trabalho e, infelizmente, nas ruas e na prisão. É nesses lugares que devemos concentrar nossos esforços para cuidar das crianças.

ISTOÉ – Qual é o futuro de uma criança privada dessas coisas básicas?
David Bell

É um futuro difícil, obviamente. E é esse o grande desafio do nosso mundo. Se você olhar o número de pessoas jovens e o número de empregos disponíveis, vai observar uma lacuna. Há muito mais jovens que empregos. É uma crise séria, muito séria.

ISTOÉ – O Brasil tem uma grave tradição de trabalho infantil. O sr. conhece alguma solução para o problema?
David Bell

É um problema de difícil solução. Somos obviamente contra o trabalho infantil e a favor da posição da Organização das Nações Unidas (ONU), que sugere a proibição legal da atividade profissional de crianças. A grande dificuldade é que, em muitas famílias, o dinheiro que a criança traz é crucial para a sobrevivência. É algo muito complicado de resolver. Algo que é possível fazer e já vem acontecendo é obrigar as empresas a não comprar e não vender produtos feitos pela mão-de-obra infantil. Temos uma iniciativa chamada Global Alliance, em que estamos trabalhando com a Nike e outras companhias para nos assegurarmos de que as condições de trabalho melhorem sempre. As empresas que participam da iniciativa não empregam trabalho infantil, mas isso não basta. Onde você estiver, é preciso trabalhar para que as outras empresas não vendam coisas feitas por crianças. É uma forma de combater o problema.

ISTOÉ – O que ocorre na realidade com uma criança que vivencia um período de guerra?
David Bell

É outro problema enorme. Na região da Palestina, por exemplo, a maioria das crianças com as quais trabalhamos já viu coisas terríveis. E tem medo. É um problema psicológico. E também existem áreas com colapso completo do local onde as pessoas habitam. Eu me lembro de ter conhecido uma jovem que, aos dez anos, viu três pessoas serem mortas na porta de sua casa, em Nablus, na Palestina. Ela tinha 18 anos e lembrava-se de tudo. A brutalização, enfim, é um grande problema.

ISTOÉ – A fundação é coletora de dinheiro junto a empresas e pessoas. Está ficando mais difícil levantar fundos com a crise global?
David Bell

Sim, está ficando mais difícil arrumar dinheiro para os projetos. Temos um orçamento de US$ 200 milhões, mas a maioria de nossas fundações parceiras também levanta fundos. Hoje, temos de trabalhar muito mais para convencer as empresas de que as doações não são apenas caridade, mas também um grande negócio. Essas crianças que ajudamos serão os consumidores do futuro, quando crescerem. Elas são ativos das empresas. E se não resolvermos agora esses problemas nos países onde vivemos, teremos muitos crimes, violência, drogas… Enfim, ficará muito difícil viver na nossa sociedade. “Não é caridade, mas interesse próprio”, é o que tentamos dizer. Algumas companhias aceitam isso e outras, não. Alguns governos aceitam e outros, não. Mas está ficando difícil, pois há uma fase de retração econômica.

ISTOÉ – O sr. acredita numa resolução de curto prazo para a crise dos escândalos corporativos nos Estados Unidos?
David Bell

Não, vamos levar um bom tempo envolvidos com isso. Provavelmente há mais coisas a serem descobertas. Haverá um sério efeito na confiança, que leva muito tempo para ser reconquistada. Vamos resolver, é claro, mas eu acho que vamos levar, pelo menos, o resto deste ano. Talvez um pouco mais.

ISTOÉ – Mercados considerados emergentes, como a Argentina, o Brasil e a Turquia, vêm enfrentando dificuldades. Isso o preocupa?
David Bell

É uma pergunta muito difícil… Obviamente, a Argentina causa uma grande preocupação, mas não há razão para que o Brasil seja observado como a Argentina. O Brasil é fundamentalmente um país forte, com grandes recursos naturais e uma gente muito capaz. É preciso fazer essa distinção. Em algum grau, o mercado tem de fazer essa distinção, olhar de uma forma mais sofisticada para o mundo. Os mercados, em geral, são pouco sofisticados. Eles olham a América do Sul como uma coisa só, mas não é. A África também não é assim. A Europa não é assim. E no Brasil há uma eleição em vista, o que sempre faz parte do problema, em qualquer parte do mundo. É sempre difícil, seja qual for o país.

ISTOÉ – O jornal Financial Times, que o sr. preside, tem planos de se instalar no Brasil?
David Bell

Bem… temos uma longa relação com a Gazeta Mercantil. E não temos nenhum programa imediato para o Brasil. Mas é um mercado muito grande e muito atrativo. Temos uma companhia espanhola, a Recoletos, e eles têm um grande interesse no Brasil. Não há um plano imediato, mas nós, um dia, vamos considerar o Brasil muito importante para nós.

ISTOÉ – A chegada no Brasil se dará, então, através da Gazeta Mercantil…
David Bell

Não. Não necessariamente. Precisamos sempre dialogar com todos.