O euro finalmente alcançou a paridade com o dólar. Aconteceu na segunda-feira 15, às 13h15 de Bruxelas, quando a moeda européia subiu para US$ 1,007, objetivo que semanas antes parecia ainda inatingível ao Banco Central Europeu (BCE). Foi a primeira vez desde 4 janeiro de 1999, quando a moeda da zona do euro foi negociada acima de US$ 1,17, para depois vir caindo até o recorde de baixa de US$ 0,8225 em outubro de 2.000. Se houve champanhe na sede do BCE não se sabe, mas Romano Prodi, o presidente da Comissão Européia, não resistiu ao triunfo: “O euro é um dos protagonistas do cenário internacional”, disse. Passada a euforia da ultrapassagem, o próprio Prodi deve ter caído na real. Não é o euro que sobe, é mais o dólar que cai, como reconheceu Francis Mer, ministro da Economia da França, um mês atrás.

A explicação é simples: desde abril, o dólar enfrenta pressões, principalmente em razão das dúvidas sobre a capacidade de o presidente George W. Bush comandar a recuperação da economia americana. Na verdade, mais baixa do que a cotação do dólar está a credibilidade do presidente americano, atingida de frente pelas falcatruas contábeis das grandes empresas americanas. Ele mesmo está na berlinda, com uma enxurrada de denúncias sobre seu enriquecimento. São denúncias de peso que, dia a dia, tornam menos inverossímel a possibilidade de um impeachment. O economista Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton, articulista do The New York Times, por exemplo, escreveu com todas as letras que transações suspeitas marcam a vida do empresário Bush. O título do artigo publicado na terça-feira 16: “Como Bush ficou rico”. Krugman conta que Bush prosperou à custa de muita ajuda dos amigos na década de 80 e ficou rico nos anos 90. Ele investiu US$ 606 mil (cerca de R$ 1,74 milhão) como parte de um sindicato que comprou a equipe de beisebol do Texas Rangers em 1989 – tomando dinheiro emprestado e pagando a dívida com os rendimentos da mirabolante venda de sua empresa petrolífera falida e afogada em dívidas à Harken Energy, da qual se tornou diretor depois. Em seguida, viu esses US$ 606 mil crescer para US$ 14,9 milhões no decorrer dos nove anos seguintes porque, ao vender sua participação no Rangers (1,8% do capital original), seus sócios abriram mão voluntariamente de parte de suas fatias no negócio. “Será que esse fato não deveria ter causado estranheza?”, pergunta Krugman.

Nem mesmo o discurso positivo de uma das autoridades mais respeitadas pelo mercado, o presidente do Fed (Federal Reserve, BC dos EUA), Alan Greenspan, na terça-feira 16, conseguiu segurar o mercado acionário americano. No final do dia, o índice industrial Dow Jones havia caído quase 2%, em seu sétimo dia de queda consecutiva. Greenspan apoiou várias propostas para endurecer as penas criminais para os executivos que fraudarem os acionistas, inclusive a idéia de responsabilizar os executivos-chefes pela precisão da informação financeira divulgada por suas empresas. E desceu a ripa na cultura empresarial americana, hoje caracterizada por uma “ganância infecciosa”, responsável pela quebra de confiança entre os investidores. O estado de ânimo dos grandes investidores combina desalento, recusa da realidade e a sensação de que os problemas do mercado não irão desaparecer tão logo, quaisquer que sejam as novas leis ou regulamentações anunciadas por Washington. Em Wall Street, vários investidores profissionais estão revoltados por saber que executivos que ganham milhões ou dezenas de milhões de dólares por ano recorreriam à fraude para ganhar outros tantos milhões.

Antigo defensor da desregulamentação e da confiança nas forças do mercado para policiar as boas práticas empresariais, Greenspan reconheceu que errou. “Minha visão era de que os contadores e auditores sabiam ou deveriam saber que o valor de mercado de suas empresas dependia da integridade de suas operações, e que, portanto, um controle por parte do governo era desnecessário e impróprio”, disse. “Eu estava errado.” Agora apóia a criação de uma nova entidade para supervisionar o setor contábil, um dos pontos principais dos projetos de lei aprovados tanto pela Câmara quanto pelo Senado em resposta aos escândalos corporativos.

Febre tecnológica – O auge da desregulamentação – que pode ser entendida como a crença de que o tal mercado resolve tudo, uma espécie de vale-tudo – aconteceu em 1999, quando ele, Greenspan, criticava a “exuberância irracional” do mercado, movido na época pela febre tecnológica. “Esses escândalos são consequência dessa desregulamentação”, diz o professor Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de mais de duas centenas de trabalhos publicados em 18 países. “O capital é um moinho satânico, tem que ser controlado e o Brasil deveria tirar lições desses episódios .”

O presidente Bush disse que sancionará qualquer projeto de lei que vier do Congresso. Enfraquecido, ele vai ter que engolir na marra algumas cláusulas reconhecidamente rejeitadas pela Casa Branca. O projeto de lei da Câmara criará uma sentença de prisão de até 20 anos para fraude corporativa, ou 25 anos em outro caso, o dobro da sentença máxima pedida pelo projeto de lei do Senado. A Câmara e o Senado devem começar a negociar nos próximos dias a conciliação dos projetos.

Os escândalos da administração Bush lembram Watergate – o escândalo da década de 70 que levou o então presidente Richard Nixon ao impeachment – e dão uma nova dimensão às peripécias sexuais de Bill Clinton, alguma coisa como “nós éramos felizes e não sabíamos”. As falcatruas corporativas fizeram com que os americanos se sentissem traídos na sua longa história de amor com as ações e passassem a questionar o futuro econômico e financeiro do país. É um escândalo atrás do outro: agora é a American Online (AOL) que, segundo denúncias publicadas na quinta-feira 18, no jornal The Washington Post, usou práticas contábeis pouco usuais para melhorar seu faturamento entre 2000 e 2002, antes de sua fusão com a Time Warner. O jornal disse ter lido centenas de páginas de documentos confidenciais da empresa e entrevistado vários funcionários, ex-funcionários e clientes da AOL. O resultado foi um gráfico em que aparecem US$ 270,1 milhões em operações não convencionais e a renúncia anunciada do vice-presidente de operações, Robert Pittman.

O mercado de ações caiu 37% desde o início de 2000 e o presidente Bush pode falar o que quiser, até que a economia está se recuperando e que a América deve se curar da ressaca dos exageros econômicos da década de 90, como disse em discurso para empresários do Alabama, que não consegue convencer. Para os investidores, a incerteza é a nova norma. O affaire Enron mostrou que grandes corporações, até então sagradas, mentem, roubam e manipulam. A confiança no capitalismo americano virou pó. “Os mercados notam uma crise de liderança na América”, disse Stephen Roach, economista-chefe do banco de investimento Morgan Stanley. E Bush? “Bush está embuchando”, ironiza o economista e deputado federal (candidato à reeleição) Delfim Netto. Entenda como quiser. Embuchar, segundo o Aurélio, pode ser fartar, saciar, embatucar (“as provas eram tão esmagadoras que o réu embuchou”, exemplifica o dicionário), andar amuado, descontente, desgostoso… Tudo indica que o presidente americano embuchou mesmo depois que foi levado pelo moinho satânico do capital, deixando no ar o que o economista Reinaldo Gonçalves reconhece como “um cheiro de 1929”, o ano do crack da Bolsa de Nova York, quando os Estados Unidos mergulharam numa terrível crise de repercussão mundial.