A tarde ensolarada de terça-feira 8 chegava ao fim quando Michael
Jackson pisou na avenida Vieira Souto, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Suava muito enquanto tirava fotos com admiradores. Por pouco não cruzou com Marilyn Monroe, que repetia a cena do filme O Pecado mora ao lado e levantava o vestido à frente do ambulante Marcos de Oliveira. “Vai, lacraia!”, berrou o vendedor, como incentivo à ousadia da estrela hollywoodiana. Marilyn é o transformista paraibano Salete Campari, que pulava Carnaval na Banda de Ipanema, na orla carioca. Solícito, cumprimentava a todos. Só deixou duas questões sem resposta: o nome de batismo e a idade. “E isso é pergunta que se faça a uma mulher?”, indignou-se. Também Michael Jackson não quis revelar a verdadeira identidade. Soube-se apenas que tem o apelido de Nenê e 40 anos de idade. Além da roupa e do guarda-chuva pretos, rosto pintado de branco, cabelos escorridos e óculos escuros, tinha como complemento a cabeça enjaulada, segurava uma boneca e trazia uma placa onde se lia “Culpado ou Inocente?”, numa alusão ao julgamento do astro acusado de pedofilia. “Não vou ao sambódromo! As ruas têm mais alegria!”, gritou Nenê, antes de ter a voz abafada pela bateria da banda, que arrastava 20 mil foliões.

A opinião do Michael Jackson fake é a mesma de milhares de foliões que saíram de casa para fazer do Carnaval de rua 2005 o melhor das últimas duas décadas no Rio de Janeiro. Longe da atenção da tevê e dos grandes jornais, gente anônima virou o Rio de cabeça para baixo. No melhor sentido. O início oficial da folia foi na manhã de sábado 5, com o 87º desfile do Cordão da Bola Preta, e já dava uma idéia do que viria pela frente. Cerca de 60 mil pessoas foram ao centro da cidade para pular ao som do repertório que misturava marchinhas dos velhos tempos a poucas músicas atuais. Tanto adolescentes quanto a turma de cabelos brancos balançavam igualmente. Vestido como Nega Maluca, Leo Barros, 43 anos, exultava com o grande número de fantasiados nas ruas. “Eu mesmo convenci uns 15 amigos a vestir fantasias”, contou. No Cordão do Boitatá, que desfilou na manhã de domingo também embalado por músicas tradicionais, essa era a única exigência: todos tinham de ir fantasiados. E deu de tudo. Diabos e diabas, anjos, bruxas, piratas e teve até sobrevivente de tsunami. O sedutor anjo Fernanda Assunção, estudante de direito, 21 anos, garantiu o visual ao comprar o halo para fixar sobre a cabeça. De resto, encontrou no armário camiseta e saia brancas, coladas no corpo para realçar as curvas. Fernanda bebeu cerveja, beijou o namorado José Eduardo Pieri, advogado de 26 anos, e mostrou que anjo moderno também peca.

Improviso – Quem não tinha fantasia apelou à criatividade. Uma foliã enfaixou
a cabeça, botou um esparadrapo no rosto e rasgou a camisa: uma perfeita acidentada. Outro usou um chapéu de palha e encheu o rosto e pescoço com marcas de um lábio com batom. Melhor malandro impossível. A diaba Sueli Nascimento, 49 anos, arranjou um jeito de ganhar um troco extra. Com o cartaz Xixi Feliz, oferecia à mulherada, por R$ 1, a solução para a necessidade reprimida: um pequeno cone que permitia às mais apertadas se aliviarem. De pé. No Boitatá, alegria e irreverência não se associaram a excessos ou seios de fora. A não ser no caso do empresário Bruno Guglielmetti, de Pedrita Bombada, com peitos de plástico à mostra, que vibrava. “É o resgate do Carnaval antigo!”, festejava. No trajeto pelo centro, o bloco cantava marchinhas como Alalaô, Sassaricando, Ô abre alas e Mamãe eu quero, executadas pelos oito músicos do grupo, com a ajuda de agregados de última hora. A médica carioca Simone Cotrim, 32 anos, escondeu os cabelos louros com uma peruca negra e virou a Mulher Incrível. A animação foi tanta que perdeu a máscara e o anonimato. “Minha irmã toca no grupo e todo ano eu saio”, contou. O bloco atraiu até um palhaço internacional, o italiano Leo Bassi, formalmente vestido de terno e gravata, com um chapéu maluco no qual havia duas notas de um dólar. “É um estudo sociológico no Rio para ver quanto tempo o dinheiro vai durar na minha cabeça”, provocava. Até o fim do percurso, no largo de São Francisco, o dinheiro permanecia intacto. Um milagre em plena festa pagã.

Diabo – Milagres, aliás, eram o que prometiam os dois blocos evangélicos que se apresentaram na avenida Rio Branco na tarde de terça-feira. Para arrebanhar novos fiéis, duas igrejas pentecostais aderiram ao samba. O primeiro a passar foi o Mocidade Dependente de Deus, com 500 componentes. Do alto do carro de som, o pastor Marco Antonio Peixoto, da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, parodiava os puxadores de escola de samba, que começam o desfile com o grito de guerra “Chora, cavaco!” Voltando-se para os 110 ritmistas, gritou: “Chora, diabo!” Quando a bateria começou a tocar, ele orientou: “Vamos estourar os tímpanos do demônio!” Pouco depois, desfilaria o Cara de Leão, com 800 integrantes e alas com coreografia marcada. Uma das danças reproduzia a luta do bem contra o mal, com uma pobre vítima assediada por personagens fantasiados de roupa e cartola pretos representando o mal. No fim, o bem vence, para alegria da porta-estandarte e do mestre-sala, que evoluíam com a bandeira do bloco na qual se lia “Jesus – Projeto Vida Nova”. No samba-enredo, o refrão alertava os foliões: “São apenas quatro dias de uma falsa fantasia/Jesus tem vida para te dar.”

Pelo que se viu nas ruas, o alerta não adiantou. Houve desfiles de todos os tipos – até de cães. O Blocão reuniu várias raças pelas ruas de Copacabana. O Simpatia é Quase Amor tomou Ipanema e o Carmelitas entupiu Santa Tereza. O boom da folia nas ruas ressuscitou até agremiações extintas, como a Banda da Rua do Mercado, formada por operadores da Bolsa de Valores e jornalistas da Gazeta Mercantil em 1999, na Praça XV. Em 2002, a Bolsa transferiu suas operações de pregão para São Paulo, a Gazeta fechou sua sede no local, as corretoras baixaram as portas e a banda sumiu. Voltou este ano, sob a direção de Ricardo Moraes, assessor da presidência do BNDES. “A banda renasce com os mesmos conceitos de sua criação: revitalizar o centro histórico e valorizar o carnaval de rua”, dizia Moraes, em meio a instrumentistas e mulatas com faixas de rainha e princesa, bem à moda antiga, em plena tarde da quinta-feira 3. “Vamos sempre lutar, sem perder a ternura e a alegria jamais”, garantiu. Houve também multiplicação de grupos de Clóvis, personagens mascarados que usam roupas e guarda-chuvas coloridos e perfumados. “Essa fantasia pesa uns 30 quilos. É cansativo, todo ano alguém passa mal”, explica o pintor Ednaldo de Brito, 31 anos, líder do grupo Atividade, com 25 integrantes. “Mas até Quarta-Feira de Cinzas vale tudo”, dizia. Como nos velhos tempos.

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