Você consegue imaginar o que são sete milhões de litros de gasolina? Uma dica: se essa quantidade fosse colocada em caminhões-tanque, seria necessário um total de 233 carretas para armazená-la. Outra pista: o número equivale à venda, durante todo um mês, de nada menos que 100 postos de combustível de porte médio no País. Mais difícil do que visualizar o gigantesco volume, porém, é entender como toda essa gasolina, retirada da refinaria de Manguinhos, em Duque de Caxias (RJ), nos meses de maio e junho, desapareceu sem chegar ao destino previsto no contrato de venda: um suposto comprador na Bolívia. A história poderia ser mais um caso de roubo de carga em estradas brasileiras não fosse o rastro de irregularidades deixado pela primeira exportação terrestre do produto.

Começa pelo tipo de mercadoria comercializada na operação. A gasolina que Manguinhos separou para a Bolívia por ser para exportação está livre da cobrança de impostos e, consequentemente, é muito visada no mercado clandestino brasileiro. Ou seja, o larápio já previa o lucro de 40% que teria sobre o preço do concorrente na hora de passá-la adiante. O valor que a suposta distribuidora boliviana aceitou pagar à refinaria fluminense também desperta desconfiança – R$ 0,70, por litro, contra os cerca de R$ 0,50 pedidos pela Petrobras. Sim, num mercado livre, cada um vende pelo preço que quer. Essa foi a resposta de Manguinhos, uma das duas únicas refinarias privadas do País. Mas quem tenta saber da compradora por que optou pelo preço mais alto começa a entender a fraude.

No contrato de exportação consta que a receptora da gasolina na Bolívia seria a Cambras, com sede em Santa Cruz de la Sierra. Consultados por ISTOÉ, nem o Consulado Boliviano em São Paulo nem a Câmara de Comércio daquela cidade conseguiram localizar a empresa. Tampouco ela é conhecida no setor de combustíveis. O diretor comercial de Manguinhos, Luiz Henrique Sanches, não se preocupou em saber quem era sua cliente num negócio de R$ 21 milhões. Segundo ele, cabia à refinaria responder apenas para a Thork, a trade responsável pelo desembaraço aduaneiro do produto do Rio de Janeiro até chegar às mãos da Cambras. “A Thork foi aprovada pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) para operar no setor de exportação”, afirma Sanches. “O crivo da agência bastou para nós”, acrescenta.

A justificativa de Manguinhos só não é perfeita aos olhos da Polícia Civil de Paulínia, que apura o caso, por causa de dois pontos. O primeiro é a pessoa com quem a refinaria negociava, o empresário Ricardo Daim – preso em 14 de março deste ano, pela CPI dos Combustíveis de São Paulo, por venda de combustível da Petrobras sem imposto e emissão de notas frias de sua empresa, a distribuidora Pollus em Paulínia (SP), fechada por desvio de mercadoria em 1999. Segundo Henrique Sanches, era Daim quem autorizava a maior parte do carregamento dos caminhões na refinaria. “Ele tinha uma procuração da Thork para fazer uma retirada de até 30 milhões de litros de gasolina, mas, quando chegou nos sete milhões, ele disse que não queria mais”, explica o diretor comercial. A confiança no ex-acusado pela CPI, segundo Sanches, provinha do fato de os pagamentos pelo combustível estarem acontecendo normalmente.

É esse o segundo ponto de suspeita da Polícia de Paulínia. Quem pagou a gasolina de Manguinhos? A refinaria responde que os R$ 4,9 milhões, relativos aos sete milhões de litros, vieram em dinheiro, depositado na conta da empresa e, por isso, de origem difícil de ser identificada. “Uma transação desse porte em dinheiro no mínimo despertaria a desconfiança do gerente do banco”, acredita o delegado Tadeu Brito. Na versão da Thork, apenas R$ 1,050 milhão saiu de seu bolso, num cheque administrativo à Manguinhos. O pagamento teria ocorrido com o dinheiro vindo de uma operação de entrada de recursos via Banco Central, que imaginavam ser da compradora boliviana. O fato é que nem a Thork conhecia a tal Cambras. “A remessa via Banco Central não nos dava razão para desconfiar até aquele momento”, afirma o advogado criminalista da trade, Celso Vilardi. Para ele, a Thork é vítima de um golpe e foi usada como “laranja” na suposta exportação. Contudo, a trade passou a Daim o poder de retirar a gasolina, preencher notas, contratar a transportadora e definir onde o produto ficaria armazenado até o carregamento dos caminhões. Sobre essa ligação, o advogado da Thork diz: “Eles não tinham obrigação de saber do passado do Ricardo no ramo, já que a ANP sabia da presença dele em todo o processo.”

Com o depósito do dinheiro e a carga liberada pela refinaria, a incrível história da gasolina desaparecida inicia um novo capítulo. É quando o combustível chega às bases das distribuidoras Exxel e Alamo, de Paulínia – lugar considerado pela trade como parada obrigatória antes de seguir viagem até a Bolívia. Segundo o advogado da Thork, seus clientes passaram a desconfiar do fato de Manguinhos estar liberando mais gasolina do que o volume pago por ela, com o cheque administrativo. Até o início da última semana de junho, a Exxel teria recebido 700 mil litros da gasolina com notas fiscais da Thork e da Alamo, cerca de 6,5 milhões. Só quando chegaram a Manguinhos, os donos da trade, Antônio Andrade e João Dutra Barreto, teriam descoberto que tudo já estava pago.

Carga marcada – A ANP tomou conhecimento da história através de um fax da trade, enviado em 28 de junho. Dois dias depois, uma tropa de fiscais da agência desembarcou em Paulínia para localizar a gasolina de Manguinhos. Como a procuravam? A fiscalização analisou cada amostra de combustível do pólo atrás de um marcador químico, um produto adicionado nas gasolinas vendidas sem imposto. “Fazemos isso para rastreá-la num caso de roubo ou extravio”, explica Roberto Maia, da ANP. O combustível marcado foi encontrado não só nas bases da Exxel e da Alamo, como era de esperar, mas também nas da Bremen e da Atlas. O produto havia se espalhado. Para surpresa maior da blitz, as concentrações do marcador variavam tanto em cada reservatório que é impossível dizer hoje com quantas outras gasolinas se misturou a carga marcada de Manguinhos e para quem ela já foi vendida. Pior: a agência usou na carga para a exportação o mesmo marcador que adiciona nos solventes que “batizam” a gasolina. Conclusão: não dá para provar se nas bases havia combustível adulterado ou gasolina para exportação. Tudo o que se sabia é que a gasolina sumiu.

A partir da blitz da ANP, cada distribuidora tratou de achar uma versão, um documento e um culpado diferentes. Pela ordem: a Exxel disse que a gasolina armazenada em sua base veio de Manguinhos com nota da Thork. “Como eles não especificaram a presença do marcador, a gente misturou junto com suas outras gasolinas”, diz o diretor da Exxel, Miceno Rossi Neto. Segundo ele, os 700 mil litros foram devolvidos a pedido da Thork. Miceno mostra uma única nota de saída, mas sem o nome da empresa transportadora. A Bremen e a Atlas não se pronunciaram oficialmente. Já a Alamo faz acusações graves: diz que comprou 800 mil litros do combustível direto da Thork e serviu de intermediária entre a trade e outras distribuidoras na comercialização dos 5,7 milhões de litros restantes. Sobre as provas, a distribuidora promete entregá-las à Polícia Civil, quando for depor. Além de documentos, a Alamo terá de revelar por que comprou gasolina de uma trade contratada para exportar e se o negócio passou pelas mãos de Daim.

Na quarta-feira 17, o polêmico empresário falou a ISTOÉ e trouxe um novo nome na transação entre Manguinhos e a misteriosa compradora da Bolívia. Seria a Rush Oil, uma empresa com sede no paraíso fiscal das Ilhas Virgens. Na versão de Daim, no final do ano passado os dois sócios da Rush – que ele só revela que são holandeses – procuraram sua ajuda para comercializar gasolina do Brasil para a Bolívia. Os holandeses anônimos são os únicos que dizem conhecer a Cambras. Pelo acordo, Daim deveria arranjar uma trade que levasse a carga até lá. “Um amigo meu, de grande influência política, ajudou a Thork a conseguir a aprovação na ANP. Eles não aprovam nada sem lobby”, diz. Sobre o fato de a agência saber da sua participação no projeto, fala que foi recebido pelo superintendente Carlos Valois antes da aprovação da trade. “Ele me chamou para conversar porque queria saber mais detalhes sobre o mercado na Bolívia.”

Em nota, a ANP esclarece que a permissão para a Thork exportar saiu em virtude do cumprimento das exigências previstas na portaria que regulamenta o assunto. E que não há referência a Daim na concessão. A agência autuou a Thork e abriu um processo administrativo, cobrando explicações até a segunda-feira 22. A Thork pediu mais 15 dias de prazo, o que foi negado pela ANP. De fato, a portaria não obrigava o órgão a checar essas informações antes de a confusão estar armada. Tampouco a acompanhar a venda em Manguinhos, o trajeto até o país de destino e as referências da compradora. Mas bastava um telefonema à Bolívia para descobrir que a única empresa brasileira que tem autorização para entrar com gasolina naquele país se chama Petrobras. Os bolivianos vêem a gasolina como “produto controlado”, pois suspeitam que seus compradores a usem no refino da cocaína.