A palavra é indignação. No momento em que o Brasil é a estrela do cenário mundial, os brasileiros estão com a autoestima em alta por perceberem a nossa capacidade de ocupar definitivamente uma posição de destaque global, o País está diante de mais um escândalo rasteiro de corrupção. O brasileiro pensou que já tivesse visto tudo neste campo. Mas agora assiste perplexo ao roteiro de roubalheira mais escrachado, debochado e, certamente, mais repleto de provas cabais. Uma história que parte da classe política insiste em reprisar. As imagens do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), sentado displicentemente em uma poltrona, recebendo um maço de R$ 50 mil das mãos de Durval Barbosa, seu ex-secretário de Relações Institucionais, chocou o País. Não pelo personagem – amplamente conhecido desde que ISTOÉ revelou, em 2001, a violação do painel de votação do Senado Federal, em que o então senador atuou como comparsa de Antônio Carlos Magalhães num assalto à democracia representativa. Mas pela naturalidade com que Arruda ainda atua no terreno da ilegalidade. Chamado de “big boss”, conforme diálogo gravado entre o operador Durval e o chefe da Casa Civil, José Geraldo Maciel, o governador apresentou duas versões para o propinoduto do Distrito Federal, mas não conseguiu ser convincente. Primeiro, disse que era dinheiro para comprar panetones a famílias carentes, o que deu motivo a piadas em todo o País. Depois, afirmou que era dinheiro de campanha.

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Além das já conhecidas práticas ilegais dos outros esquemas do gênero, o mensalão do partido Democratas (DEM) espantou o País por causa do deboche de seus protagonistas. O presidente da Câmara Distrital, deputado Leonardo Prudente, alegando fazer jus ao sobrenome e temendo a ação de marginais que poderiam lhe abordar pelas ruas, acomodou maços de dinheiro recebido do Mensalão do Demo até nas meias. “Eu não uso pasta”, disse o parlamentar. Em seguida, admitiu tratar-se de um dinheiro ilegal. “A doação não foi contabilizada”, afirmou. A deputada Eurides Brito (PMDB), líder do governo, também foi filmada. Ela recebeu R$ 30 mil e guardou os cinco maços de dinheiro em sua modesta bolsa de couro. O dono do jornal “Tribuna do Brasil”, Alcyr Collaço, ligado a políticos do PPS, partido que dava sustentação ao governo Arruda, foi pilhado recebendo R$ 30 mil e, sem a menor cerimônia, distribuiu os maços de notas de R$ 50 e R$ 100 na cueca. O escárnio é ainda mais evidente nas cenas em que Prudente e Durval, comandados pelo deputado mensaleiro Júnior Brunelli (PSC), se abraçam para rezar.

corrupção descarada O que chama a atenção nos vídeos é a naturali dade com que todos os personagens lidam com a atividade criminosa

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O texto da oração da propina revela um cinismo inaceitável: “Quero agradecer, meu Deus, por estarmos aqui. Somos gratos pela vida do Durval, que é uma bênção em nossas vidas. Quantas investidas de homens malignos contra a vida dele. Precisamos da tua cobertura. O Senhor tem pessoas que têm armas para nos ajudar nessa guerra. O Senhor nunca falha. É o Senhor que determina. Proteja a vida do Durval, de seus filhos, seus familiares. Precisamos de uma cidade diferente. O Senhor tem para nós um novo tempo. O Senhor é a verdade, é a nossa justiça. É aquele que abre as portas. Tire esses homens do nosso caminho.” Terminada a oração, o deputado Prudente comenta: “Que paulada!” Poderia concluir com um singelo “amém”. Mas nada ali tinha a ver com Deus.

A indignação da sociedade Tristeza, lamentos, preocupação e pedidos de impeachm ent de José Roberto Arruda foram a reação contra a roubalheira no governo do Distrito Federal

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A cada gravação revelada, o governo de Arruda se esfacela. Diante do clamor público, bateram em retirada 15 secretários e seis legendas aliadas. Até a sexta-feira 4, Arruda já enfrentava nove processos de impeachment. Na quarta-feira 2, manifestantes invadiram a Câmara Distrital, exigindo o impeachment. O clima na capital é de revolta, a ponto de o vice-governador Paulo Octávio, também citado como beneficiário do esquema, circular só de helicóptero, temendo ataques de manifestantes, depois que o carro do deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) foi cercado ao sair de uma reunião do partido.

O mensalão foi descoberto pela Operação Caixa de Pandora da Polícia Federal a partir de deleção premiada feita por Durval (leia à pág. 51). O esquema tem origem em contratos irregulares do governo com grandes empresas e na aprovação de projetos importantes na Câmara Distrital. Além do mensalão, a PF desvendou uma quadrilha que cobra 40% de propina sobre os contratos do governo, compra partidos políticos, frauda licitações, terceiriza o controle de órgãos públicos e negocia projetos de lei. Muitos desses crimes estão documentados com planilhas, anotações, notas fiscais, cópias de contratos, depoimentos e, principalmente, nos vídeos que têm indignado os brasileiros.

e agora, dem? Com novo nome, o antigo PFL caprichou no marketing para mudar sua imagem e agora vê que faltou alterar os hábitos políticos

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O País que teve um presidente apeado do poder por corrupção se vê agora diante de um escândalo que vem à tona exatamente no momento em que o DEM se preparava para entrar na disputa de 2010 como o partido da ética. Agora, está ameaçado de ficar sem a vaga de vice na chapa nacional do PSDB. O Mensalão do Demo abala definitivamente a imagem da legenda que já foi Arena, PDS e PFL, em que estiveram abrigados os mais conhecidos coronéis da política brasileira. No partido, a expulsão de Arruda é dada como certa, embora algumas vozes ainda insistam em procurar transparecer algum gesto de solidariedade. “As imagens mostradas para o Brasil são muito fortes, mas o governador precisa ter seu direito de defesa assegurado”, disse o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM). Ele admite, no entanto, que os argumentos usados por Arruda são muito frágeis.

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O DEM define nesta semana o destino de Arruda, mas o governador só escapará da degola caso consiga recurso judicial. “Por mais que o partido decida pela desfiliação do governador Arruda, o desgaste para o DEM já está feito”, lamenta o presidente do partido, deputado Rodrigo Maia (RJ). “São duas tristezas: pelo amigo Arruda e pelo governador no qual apostávamos muito na reeleição.” É quase certo que o DEM vá abrir mão do governador para tentar reverter a imagem de legenda que também distribui mensalão. “Ninguém pode negar que o mensalão será sempre do DEM, mas a diferença dos outros partidos é que vamos tomar uma decisão rápida, não vamos empurrar com a barriga”, diz Maia. Caiado e o senador Demóstenes Torres (GO) defenderam a expulsão imediata do governador. “Faltou coragem”, lamentou Demóstenes, após a reunião da Executiva que deu prazo de oito dias para Arruda se defender. O que tem incomodado alguns líderes do partido é que Arruda, há cerca de dois meses, pediu a um assessor que comprasse um equipamento para fazer gravações. O governador participou de várias reuniões com os democratas usando um relógio capaz de registrar as conversas. E sua primeira reação foi avisar ao partido que não cairia sozinho.

No diálogo, Arruda é chamado de  “Big Boss”

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Em vídeo gravado na Secretaria de Relações Institucionais do GDF, os secretários da Casa Civil, José Geraldo Maciel e Durval Barbosa tratam de licitações e divisão de dinheiro. Nas gravações, Maciel descreve como o governador José Roberto Arruda (foto) participa do esquema.
Durval – Vamos ver isso daqui (…) Sempre quem conduz a… é o big boss lá.
Maciel – É o big boss.
Durval – Sai o reconhecimento, ele faz assim, ele prescreve o que ele quer fazer. Ele prescreve. Porque o outro já tá arrumado. Geralmente, ele tem alguma coisa pré para fazer por esse montante. Então saiu o seguinte, saiu da Linknet 12.460 da Vertax 1, da Vertax 2, esse dinheiro… (mostrando algo). Então tá. Tá aqui. 6, 6.300, 6.500, 15.500. Que é que ele quer fazer? Ele sempre quer fazer isso com os 60 mil.
Maciel – Quanto que tem que dar isso aqui?
Durval – A priori, deve dar 200 mil.
Maciel – Você pergunta ou quer que eu pergunte?
Durval – Você pergunta. Sabe por quê? Geralmente…
Maciel – Isso com 1.5 já tirado de nossas (sic)? Ou não?
Durval – 1.5, 1.6…
Maciel – Então, o que ficaria livre para ele? Ficaria para ele dispor?
Durval – Um e duzentos
Maciel – Um e duzentos. Tá. Eu vou falar com ele.
Durval – E aí… Ainda falta uma parte dele…

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em viagem à Europa, num primeiro momento disse que “as imagens não falavam por si” e que a investigação deveria ser concluída para se chegar a uma definição. Mais tarde, diante das evidências, o presidente foi incisivo: “As pessoas que fizeram coisas erradas terão que pagar. Esse caso é deplorável para a classe política.” Lula tem razão. O Brasil não consegue aceitar que os políticos insistam nessas práticas. A quadrilha de Arruda fechou negócios que renderam bilhões. Ao longo de mais de três anos de governo, segundo depoimento de Durval à PF, os titulares de todas as secretarias e unidades do GDF foram orientados a cobrar 40% de propina sobre os contratos. Ainda de acordo com o delator, Arruda ficava com 40% da propina, Paulo Octávio com 30% e o chefe da Casa Civil, José Geraldo Maciel, distribuía 10% para os deputados da base de apoio do governo. Outros 10% ficavam com assessores de Arruda e o restante era uma espécie de cota livre, a ser entregue a pessoas escolhidas pelo próprio governador. As escutas da PF mostram Arruda negociando pessoalmente com Maciel a distribuição da propina. “Aquela despesa mensal com político sua hoje tá em quanto?”, pergunta Arruda. Maciel dá a ele a “listinha” dos pagamentos. Arruda, em seguida, pede para “unificar” os pagamentos do mensalão em uma pessoa.

REVOLTA DO POVO Em passeata, manifestantes quebraram vidros
e invadiram a Câmara Distrital, chamada de “Casa da Propina”

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ENTERRO No caixão, a reeleição de Arruda

Um dos empresários acusados de abastecer o esquema, que aparece nas imagens entregando dinheiro na sede do governo do DF, é José Celso Gontijo, dono da Call Tecnologia e ex-proprietário da Via Engenharia. Ele e Paulo Octávio são apontados como responsáveis pela adulteração da lei do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) de Brasília. Quem cuidou pessoalmente de pagar os deputados para fraudar a lei foi o diretor das empresas de Paulo Octávio, o executivo Marcelo Carvalho, segundo revelou Durval nos depoimentos. Mais de R$ 50 milhões teriam sido pagos em propinas para transformar glebas rurais em urbanas, aumentando seu valor de venda em até 1.000%, negócio que poderia render à quadrilha cerca de R$ 13 bilhões.

Há outros empresários apontados como corruptores do esquema. Durval denunciou o envolvimento do iraniano Ben Sangari, que conseguiu contratos de R$ 289 milhões na área de Educação. O Tribunal de Contas do DF realiza auditoria nos contratos. Mas um dos conselheiros do TCDF é Domingos Lamoglia, ex-chefe de Gabinete de Arruda, flagrado numa reunião em que fora distribuído dinheiro da propina. Outro empresário envolvido é Gilberto Lucena, dono da empresa de informática Linknet, que desde o governo Roriz mantém interesses no Distrito Federal. Em um dos vídeos, ele reclama que as propinas cobradas pelo governo de Arruda estão muito altas.

Um dos pontos mais impressionantes das denúncias é justamente a perpetuação do esquema, iniciado na gestão anterior à de Arruda. Notas fiscais apresentadas por Durval à PF mostram que a empresa Notabilis Comunicação e Marketing, que tem o filho de Arruda, Marcos, como sócio, teria recebido R$ 604 mil em contratos com o governo do DF entre 2003 e 2005, durante o governo de Joaquim Roriz. Fatos como esse talvez expliquem por que, mesmo conhecendo o esquema e sabendo que Durval era alvo de investigações, Arruda decidiu mantê-lo como peça-chave de sua gestão. Só não contava que Durval tivesse sido transformado em agente duplo através da delação premiada.

“Tem corrupção forte aqui”
Alto e bom som, empresário denuncia esquema dos ônibus

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SHOW Amaral disse que não pagou a deputados e foi perseguido

Desta vez não foi gravação. Foi ao vivo. Sem necessidade de legendas, a frase foi bem ouvida por jornalistas e funcionários da Câmara Legislativa do Distrito Federal. “Tem corrupção forte aqui dentro!”, bradou o empresário Valmir Amaral, diante das câmeras de tevê sem se preocupar com a gravação. Ex-senador, ex-aliado de Fernando Collor e dono de empresas de ônibus, Amaral passou a integrar o elenco do escândalo de corrupção em mais uma cena estarrecedora. Ele denunciou voluntariamente um suposto esquema de propina no setor de transportes públicos de Brasília e acusou o então presidente da Casa, Leonardo Prudente (DEM), de ser o líder do caixa. Amaral queria fazer a denúncia na frente do deputado, mas Prudente – seguindo o que seu nome diz – chegou atrasado para a entrevista coletiva.

Sentado no lugar reservado para o deputado, Amaral desistiu de esperar: “Ele não vai aparecer enquanto eu estiver aqui, então vou antecipar logo o que vim dizer. Eu queria falar na cara do presidente da Câmara.” Em seguida, contou que os deputados estavam cobrando das empresas de ônibus R$ 1,6 milhão de propina para aprovar no primeiro semestre uma emenda à Lei do Passe Livre, estendendo o benefício a portadores de deficiência física. A lei dobraria o subsídio mensal pago pelo GDF aos empresários, de R$ 4 milhões para R$ 8 milhões.

“Me pediram R$ 170 mil, mas eu não dei”, disse Amaral, visivelmente irritado. Ele contou ainda que, após a aprovação na Câmara, o governador José Roberto Arruda (DEM) vetou a emenda. Os deputados, então, teriam obrigado os empresários a pagar mais R$ 600 mil para conseguir derrubar o veto. O que de fato ocorreu. A lei, no entanto,  ainda não foi regulamentada.  Procurados por ISTOÉ, Amaral e seu advogado Marcelo Bessa não retornaram as ligações. Prudente negou o esquema. “Meu advogado vai acioná-lo na Justiça”, afirmou a deputada Eurides Brito (PMDB), também citada por Amaral. A denúncia será apurada pela CPI da Corrupção e pela Comissão de Ética.
Claudio Dantas Sequeira