Quando a ex-médica mineira Neide Mota Machado foi denunciada em 2007 por praticar abortos em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, ela sabia que teria problemas. Não calculava, no entanto, que o abalo em sua vida seria tão significativo. Presa em julho daquele ano, era acusada de interromper a gestação de pelo menos 25 mulheres e de formação de quadrilha. Em 20 anos, teria realizado cerca de dez mil abortos em sua clínica, identificada como um espaço para orientação sexual e planejamento familiar. Na ocasião, o que mais chocava era a decisão da Justiça sul-matogrossense de punir as ex-pacientes por se submeterem ao aborto, como revelou ISTOÉ em reportagem de julho de 2008. Para Neide, começava ali a derrocada. Os amigos se afastaram, a situação financeira sofreu um abalo e ela chegou a ser proibida de exercer a profissão o Conselho Federal de Medicina cassou há cinco meses o diploma da anestesista. No domingo 29, Neide foi encontrada morta dentro de seu carro, segurando uma seringa de 10 mililitros, próximo à chácara onde vivia com a mãe. Ela iria a júri popular em fevereiro e, se condenada, pegaria no mínimo 25 anos e no máximo 79 anos de prisão.

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Perícia No carro da médica, uma seringa e frascos de anestésicos

A polícia não descarta nenhuma hipótese, mas a mais provável é de suicídio. O laudo preliminar da perícia reforça essa tese. Segundo os legistas, não havia sinal de violência no corpo. Uma marca de agulha na curvatura do antebraço esquerdo foi detectada. Como ela era destra, acredita-se que tenha aplicado em si mesma a substância que estava na seringa. Dois frascos com lidocaína também estavam no carro. O anestésico, usado por dentistas, só mataria alguém se aplicado em doses cavalares. Não parece ter sido o caso. É possível que a ex-médica tenha trocado a substância dos frascos por uma outra que levasse a uma parada cardíaca. E seu organismo não apresentaria vestígios de lidocaína. As suspeitas serão esclarecidas em cerca de 15 dias, quando sai o laudo final com as análises.

Outra evidência de que Neide tirara a própria vida é um bilhete que estava no banco ao lado dela. Parte do conteúdo divulgado pela Polícia Civil de Campo Grande dizia: “Deveria garantir que já estava dormindo quando sobrevivesse ao fim. Que não houvesse pânico, nem trauma, nem dor…”. É comum pessoas que se suicidam deixarem cartas com despedidas ou explicações. “O bilhete está na perícia para confirmar se a letra é dela”, diz o delegado Jefferson Luppe. Um casal chegou a conversar com Neide quando ela chegava a uma outra chácara para comprar leite de cabra, um hábito de seu cotidiano. As testemunhas afirmaram à polícia que a ex-médica já parecia ter alucinações, dizendo frases sem sentido como “essas crianças ficam mexendo no meu carro”. Minutos depois, ela teria seguido com o carro e parado mais adiante. Já estava morta.

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O advogado de Neide, Ewerton Bellinatti, diz que na quarta-feira 25 ela acertara uma cerimônia de cremação em São Paulo. “Mas não notei nenhuma alteração no comportamento da minha cliente que sugerisse um suicídio”, diz. “É apenas uma hipótese de uma morte ainda não solucionada.” No sábado 28, Neide comprou um vestido azul, com o qual foi enterrada. A roupa, suspeitam os amigos, seria uma escolha para o velório. O corpo da ex-médica, porém, não foi cremado. A Justiça negou a liberação da cerimônia por considerar a possibilidade de exumação do corpo.

Viúva, 55 anos, sem filhos, formada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba (MG), Neide era conhecida pela extroversão e pelo pavio curto. “Minha tia era brincalhona, decidida e estourada”, disse à ISTOÉ o sobrinho dela, Lucas Mota, 23 anos. Ele lembra que nas duas semanas anteriores à morte, Neide parecia mais abatida do que o normal. Andou um pouco quieta. Dias antes de morrer aparentava estar bem novamente. “Mas ela nem falava muito sobre os problemas judiciais que enfrentava”, diz. Lucas nega que a família tenha confirmado à polícia que Neide estivesse em depressão. Concorda, no entanto, que ela ficou ressentida com o sumiço de amigos depois do escândalo envolvendo sua clínica. A condição financeira também não era a mesma do passado – um aborto na clínica poderia chegar a R$ 20 mil (leia quadro). O casarão, um imóvel próprio, onde atendeu pacientes por duas décadas, está alugado para uma casa de repouso de idosos. Influente na sociedade de Campo Grande no passado era, por exemplo, uma das fundadoras da escola de samba Tradição do Pantanal –, atualmente levava uma vida de dona de casa.

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Neide respondia o processo em liberdade por ser ré primária, ter bons antecedentes e residência fixa. Quando vieram à tona as denúncias, ficou foragida 81 dias e, na sequência, presa apenas um mês. Ela negou até o fim que realizasse abortos em sua clínica. “A psicóloga e as quatro enfermeiras que faziam parte da equipe da ex-médica ainda serão julgadas pelos 25 abortos e por formação de quadrilha”, diz o promotor Paulo Cezar dos Passos. Porém, as penas devem ser mais brandas do que seriam para Neide, pois a participação delas é considerada de menor relevância. Os dez mil abortos estão arrolados na acusação. Mas boa parte foi descartada por não apresentar provas conclusivas ou por ter prescrito (com mais de oito anos). As mulheres que há pouco mais de um ano estavam na mira da Justiça de Campo Grande por interromperem a gravidez, como mostrou a reportagem de ISTOÉ, não precisarão mais prestar serviços à comunidade. Hoje, de acordo com o promotor Passos, elas devem comparecer todo mês ao fórum, durante dois anos, para confirmar endereço, além de não poderem se envolver em qualquer ato ilícito. Um alívio para quem enfrentou uma decisão difícil e delicada na vida e viu a dor aumentar devido a uma punição.

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