Em abril, a pequena Itueta chega ao fim da linha. A cidade do sudoeste de Minas Gerais, que fica a 297 quilômetros de Governador Valadares, será inundada pela Hidrelétrica de Aimorés. Cada hora é contada com sofrimento pelos moradores da região. Muitos não queriam partir para a nova cidade, construída à beira da BR 259, a sete quilômetros e meio do antigo município que nasceu em 1927 a partir de um pequeno povoado chamado Barra de Quatis. Os mais antigos dos atuais cinco mil moradores reúnem “causos”, detalhes da história, lembranças dos parentes e fotografias de um tempo que, em breve, será uma memória silenciosa que adormecerá sob as águas do rio Doce.

O mormaço que atinge 40 graus se transforma em suor e desce pela testa de Maurício Matos do Amaral, 80 anos, um dos primeiros canoeiros de Itueta. Ele olha o rio e se recorda do pai, Antônio, comandando os sete filhos na função de conduzir os moradores em canoas na travessia até a parte norte da cidade. Seu Amaral viveu ali mais de 60 anos e chora quando pensa no rio que passou por sua vida: “Fui embora porque não tinha jeito, mas eu queria ficar. Vou sentir muita falta da vida que tivemos lá.” O sofrimento imposto pela necessidade do progresso também afeta os balaieiros Natalino Ventura, 41 anos, e Albino Bernardo do Rosário (o seu Noca), 79. Não só as suas casas serão alagadas. O ubá – a folha retirada da beira do rio Doce, que serve de matéria-prima para a confecção de seus balaios – também vai por água abaixo. Seu Noca chegava a tirar R$ 100 por mês com a venda dos cestos. A família de Noca pôde permanecer na velha casa até que a nova ficasse pronta. Noca teve mais sorte do que outros moradores, que foram obrigados a se instalar em casas alugadas enquanto a hidrelétrica concluía as obras da nova Itueta.

Ruth Vello Cremasco Tavares Soares, 51, dona do cartório da cidade e presidente da Associação dos Moradores de Itueta (AMI), teve de ficar morando “de aluguel”. Ela foi a primeira a ter uma casa de alicerce em Itueta, que significa “terra de muitas cachoeiras”. “Acompanhei o fim da cidade até os últimos momentos e foi isso que ajudou a me conformar”, diz ela, uma das últimas a se mudar em dezembro. Do outro lado do rio Doce, na roça, o trabalhador rural Mateus Ferreira, 78 anos, chora ao se lembrar do que plantou. “Foram mais de 600 pés de cocos e de laranjas. Aqui vai demorar muito para os pés crescerem, nem sei se estaremos vivos para ver”, questiona.

Na nova Itueta, que está pronta desde agosto, a realidade será bem diferente. O barulho da estação de trem da antiga Itueta será substituído pelo da rodovia BR-259, que liga a cidade atual às vizinhas Resplendor e Quatituba. Apesar de o município, emancipado em 1948, ter uma área territorial de 456,5 quilômetros quadrados, a cidade se formou nos quase seis quilômetros quadrados que serão inundados para formar o lago da hidrelétrica. A parte mais alta da cidade, onde se encontravam a prefeitura e a Igreja de São João Batista (construída em 1929), foi demolidas para a passagem do novo risco dos trilhos da ferrovia. “O reservatório da hidrelétrica só será aberto no primeiro trimestre de 2005”, anuncia Márcio Luiz Maia, diretor de Meio Ambiente do Consórcio da Hidrelétrica de Aimorés, formado pela Companhia Energética de Minas Gerais e pela Companhia do Vale do Rio Doce.
   

Morte anunciada – Há sete anos, um grupo do consórcio anunciou o início da construção da hidrelétrica e o fim de Itueta. A decadência econômica dos últimos anos, somado a esse anúncio, fez com que grande parte da população de Itueta acabasse partindo. Dos 12 mil habitantes, restaram apenas 5,6 mil na cidade. Na Nova Itueta, construída numa área próxima à rodovia, com acesso aos municípios, foram oferecidas algumas formas de negociar as casas através de permuta ou venda. “Na permuta, por exemplo, o morador receberia um lote equivalente a sua casa e nunca inferior a 300 metros quadrados”, diz Rubens Adere, diretor de Implantação do Consórcio da Hidrelétrica de Aimorés. Além dos 351 imóveis residenciais, 136 casas sociais foram doadas às famílias de baixa renda.

Em agosto começaram as mudanças e deram início às demolições em Itueta. Os moradores que restaram lá tiveram de conviver com as ruínas da cidade velha até o fim do ano passado. Foi um processo penoso. O vice-prefeito de Itueta, Evaristo Carvalho Castro Filho, critica a forma como foi feita a mudança. Ele diz que a cidade nova deveria ter sido terminada antes da barragem: “Assim ela já estaria pronta e com infra-estrutura para receber a população”. Mas nem todos reclamam. O ex- prefeito de Itueta João Campos Del’Orto, que acompanhou todo o processo, ressalta o lado bom de toda essa mudança. Ele lembra que a cidade nova trará mais progresso e empregos para a população. “Itueta já foi uma cidade rica no início do século XX, quando vivia da exploração de madeiras. Existiam duas serrarias, fábrica de banha, de massa, coletoria federal e empregos na ferrovia. Nos últimos anos vivia no esquecimento”, lamenta Del’Orto.
Priscila Gorzoni

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A ferrovia é uma referência em Itueta e marcou a vida de muitos de seus moradores. Os vendedores de cocada, por exemplo, garantiam seu sustento e o de suas famílias nos trilhos, quando o trem de passageiros da Companhia Vale do Rio Doce parava na estação diariamente. Durante 23 anos, Geralda Ferreira de Souza, 50 anos, ganhou o pão de cada dia com as cocadas que fazia e vendia aos passageiros dos trens. Guiomar de Souza Pinto (a Dinorá), 54 anos, também criou seus quatro filhos comercializando doces nos trilhos. “No início, fazíamos doces de manga e laranja. Mas a cocada acabou pegando melhor”, diz Guiomar. Matilde Ferreira dos Reis – doceira há mais de 25 anos – lembra como era o duro e corrido o cotidiano das mulheres que acumulavam as tarefas domésticas com a atividade de cocadeiras: acordar cedo, arrumar a casa, deixar o almoço pronto, tudo isso antes de ir vender os doces na estação de trem de manhã. Maria da Penha Gomes dos Reis lembra que foi com a venda das cocadas que conseguiu garantir o estudo de seus filhos: “Mal chegávamos em casa e já tínhamos que voltar para os trilhos à tarde, quando o trem das 16h20 passava. Nós vendíamos bastante”, conta, olhando, já com saudade, no horizonte o último trem Belo Horizonte–Vitória sumir na paisagem da velha Itueta.

Com a reconstrução, Itueta ganhou melhorias como: unidade de saúde, estação de tratamento de esgotos e de lixo, rodoviária, centro cultural, museu, biblioteca, estádio, torre de tevê e iluminação da rodovia que liga a cidade à Quatituba


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