11/05/2012 - 21:00
Ao ser lançado na França, há dois anos, o romance “O Mapa e o Território” (Record), de Michel Houellebecq, causou furor. Não foi pelo excesso de sexo, tiradas racistas ou críticas ao islamismo comuns ao autor: ele reproduziu textos publicados anteriormente em publicidade e na internet. Descontada a provocação, o livro retrata com vigor o cotidiano de um artista plástico afundado no cinismo do mercado de arte, entre outras reflexões sobre o mundo atual. O autor recebeu pela obra o Prêmio Goncourt, o mais importante da França no campo da literatura.
Leia um trecho do livro:
"Je! Koons acabava de se erguer do assento, os braços ati-
rados para a frente num arroubo de entusiasmo. Sentado
diante dele num sofá de couro branco parcialmente co-
berto por sedarias, um pouco encolhido, Damien Hirst
parecia prestes a emitir uma objeção; tinha o semblan-
te congestionado, taciturno. Ambos vestiam ternos pre-
tos — o de Koons, com riscas finas —, camisas brancas
e gravatas pretas. Entre os dois homens, sobre a mesa de
centro, achava-se uma travessa com frutas cristalizadas,
à qual nem um nem outro prestava a mínima atenção;
Hirst bebia uma Budweiser Light.
Atrás deles, uma sacada envidraçada dava para uma
paisagem de arranha-céus que formavam um emaranha-
do babilônico de polígonos gigantescos até os con$ns do
horizonte; a noite estava clara, o ar, completamente lim-
po. Poderiam estar no Qatar, ou em Dubai; na realidade,
a decoração do quarto se inspirava numa fotografa pu-
blicitária, recortada de uma publicação de luxo alemã, do
hotel Emirates, de Abu Dhabi.
A testa de Je! Koons reluzia um pouco; Jed secou-a
rapidamente e recuou três passos. Havia de fato um pro-
blema com Koons. Hirst, ao fundo, era fácil de captar:
dava para fazê-lo brutal, cínico, tipo “estou cagando para
você do alto da minha grana”; dava também para fazê-lo
como o artista revoltado (porém rico) às voltas com uma obra
angustiada sobre a morte; enfim, seu rosto tinha
algo de sanguíneo e carregado, tipicamente inglês, que
o aproximava de um torcedor comum do Arsenal. Em
suma, havia diferentes aspectos, mas passíveis de serem
combinados no retrato coerente, representável, de um
artista britânico típico de sua geração. Já Koons, parecia
carregar certa dubiedade, uma espécie de contradição
insuperável entre a indefectível malícia do administra-
dor de empresas e a exaltação do asceta. Já fazia três
semanas que Jed retocava a expressão de Koons levan-
tando-se de seu assento, os braços atirados para a frente
num arroubo de entusiasmo, como se tentasse conven-
cer Hirst — algo que se revelava tão difícil quanto pintar
um pornógrafo mórmon.
Jed possuía fotografias de Koons sozinho e na com-
panhia de Roman Abramovitch, Madonna, Barack Oba-
ma, Bono, Warren Bu!et, Bill Gates… Nenhuma delas
era capaz de exprimir um grão de sua personalidade,
superar aquela aparência de vendedor de Chevrolets
conversíveis que ele optara por ostentar, o que, por si-
nal, era irritante, não era de hoje que os fotógrafos ir-
ritavam Jed, especialmente os grandes fotógrafos, com
sua pretensão de revelar a verdade de seus modelos; não
revelavam absolutamente nada, contentavam-se em se
posicionar na frente deles e disparar o motor da câmera
para bater centenas de fotos totalmente aleatórias, dan-
do risadinhas, e mais tarde escolhiam as menos ruins
da série, eis como eles procediam, sem exceção, todos
aqueles supostos grandes fotógrafos. Jed conhecia algun deles
pessoalmente e não lhes dedicava senão desprezo,
considerando-os todos, sem exceção, tão pouco criati-
vos quanto uma foto 3 por 4.
Na cozinha, alguns passos atrás dele, o boiler emitiu uma
série de estalidos. Ele estacou, paralisado. Já era 15 de de-
zembro."