Sou uma pessoa movida pela culpa. Já fiz tudo para me livrar, mas ela continua a me perseguir. Não sei exatamente de quem é a culpa de minha culpa. A primeira hipótese é a minha criação em colégios religiosos. Lembro-me perfeitamente de um livrinho de catecismo com imagens em que Jesus aparecia com a coroa de espinhos e sua cabeça sangrando, com seus pulsos pregados na cruz. Junte-se a isso a freira dizendo que Ele morreu por nós. Aos 7 anos, minha cabecinha pensava: “Mas por quê? Eu não pedi nada, coitado, eu preferiria que Ele não tivesse feito isso.” Na igreja, já maior, eu ia à missa, já culpada porque queria mesmo era paquerar e não rezar. Em Niterói, nos anos 70, a Igreja de Nossa Senhora das Almas bombava. A uma certa altura da missa, com as mãos fechadas no peito, repetíamos: “Minha culpa, minha máxima culpa.” Não sei em que contexto era, mas que tinha isso, tinha. E eu, adolescente, saía de lá com uma bigorna de culpa nas costas.

A segunda opção é minha origem de imigrantes lusitanos com toneladas de culpa, por deixar seu país, seus costumes, sua terrinha, suas irmãzinhas e mãezinhas para tentar uma vida melhor em terras tupiniquins.

A origem de minha culpa é incerta, mas o fato é que demorei dois anos para deixar minha filha com outra pessoa que não fosse o pai dela ou minha mãe. Embalada pela culpa materna, fugia do trabalho. Não vi um só filme, peça de teatro ou qualquer outra coisa que na minha cabeça soava como “abandono” de um bebê para me divertir. A bichinha não tinha chance de chorar um pouquinho que mamãe doidinha em um segundo estava lá para acudi-la. Claro que isso passou, certamente seria internada caso continuasse assim. Aliás, eu e ela.

Um dia, quando frequentava as reuniões de Betinho – esse, sim, um homem bom –, do Fome Zero, uma atriz chegou e disse: “Eu venho sempre aqui porque tenho culpa”, aquilo me libertou, eu também ia até lá pelo mesmo motivo. Sou uma privilegiada, tenho tudo que preciso, às vezes me pergunto: por que não vendo meu apartamento para tirar algumas crianças da rua? Por que não faço isso? Como posso comprar uma blusa nova se já tenho várias? Será que ajudar crianças do Pará já é suficiente? Ajudo algumas instituições em que confio, mas faço isso por altruísmo ou por culpa? Sei lá…

Exceto em ocasiões muito especiais, não bebo. Meu carro é novo e minha habilitação está sempre em dia. Mas por que será que toda vez que passo pela Lei Seca ajo como se tivesse tomado um litro de cachaça e roubado meu próprio carro? Quando viajo, na imigração é um pavor. Minha sorte é que eles não têm como perceber que meu coração está aos pulos, parece que tenho um quilo de haxixe amarrado na cintura ou cápsulas de cocaína no estômago como as “mulas” colombianas. Faço toda cena na cabeça: “Please, she’s my daughter! I’m inoccent! I’m an actriz in my country!”

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Bem, estava pensando aqui como contar o que só pode ser contado assim: este é meu último artigo, pelo menos por enquanto. Poderia contar uma linda história, mas optei pela verdade: é muito difícil para mim. Essas pesquisas que apontam a profissão de controlador de voo a mais estressante não vieram aqui em casa medir o meu estresse no dia do fechamento da revista. São 3.500 caracteres a ser inventados por uma cabeça muitas vezes tomada pelo vácuo! Vou, um pouco culpada, mas vou.
Aos meus leitores, meu muito obrigada e nos veremos num teatro perto de vocês! 

Márcia Cabrita é atriz