Vou escrever este texto como se estivesse começando um romance, até porque a história que ele conta poderia muito bem guardar-se em um.  Quando forem conhecidos os contornos dos seus personagens e os episódios da sua ação e os detalhes da sua terra, ninguém vai conseguir-lhe resistir.

Só de sabê-la assim, cheia de mistérios e sobressaltos, dá logo vontade de a ler, mas vai ser preciso esperar porque é preciso escrevê-la primeiro.

Primeiro, porque todos sabem que as histórias sobre livros têm um encanto especial. Estão mais próximas dos sonhos que dos dias do calendário e por isso vestem melhor a nossa imaginação. Segundo, porque como são palimpsestos delas próprias, colocam ao mesmo tempo e na mesma página o leitor e o personagem, só que em posições invertidas, como se as páginas nos folheassem e fossemos nós a narrativa. E foi exatamente assim que tudo começou, ao contrário, com uma ideia “encontrando” uma pessoa!

Na mesa do café da manhã, lendo a edição da Folha de S. Paulo desse dia, na espera do Jaime — à altura nas funções de cônsul-Geral de Portugal no Rio de Janeiro, e com quem eu costumava trocar as primeiras ideias matutinas sempre que a sorte me fazia amanhecer na terra fluminense — um bando de pássaros, como aquele do argumento de Borges, mas muito, muito maior, sobrevoou rasante o gramado sobre-elevado que decora as traseiras do palácio de São Clemente antes de o morro terminar a paisagem.

As aves eram tantas que, mais que um bando, lembravam um enxame de ruidosas abelhas, cada uma vozeando a sua história, todas em uma língua diferente, todas na berraria da fuga. Seriam mais de cem, talvez duzentas, todas diferentes, saídas do original desenhado do livro de Bolso das Aves da cidade Maravilhosa.

Foi desse espetáculo, tão inesperado e quase sobrenatural, que surgiu a ideia. Quando, de repente, o azul intenso refletido pela Guanabara desistiu do céu e toda a água do mundo desabou no chão, tornando a luz líquida e o ar irrespirável, aqueles pássaros atirados para baixo pelo diluvio, começaram a flutuar, já não voando, mas nadando como peixes, contra a corrente vertical da tempestade.

Cada um deles, batendo as asas, livre como um pássaro que trilha a rota da liberdade. Todos juntos enchendo as páginas de uma história, única, irrepetível e essencial. Todos juntos sumarizando a memória de um país ainda por chegar. Foi há duzentos anos. Estes são os duzentos livros.