No auge da cobrança de investidores estrangeiros ao Brasil sobre o aumento da devastação da Amazônia, um estudo divulgado na quinta-feira, 16, na revista Science estima o peso da contribuição do desmatamento ilegal em propriedades privadas cuja produção é exportada para a União Europeia.

Cruzando dados de satélite sobre a perda de floresta, com informações de registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um grupo de pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha estima que embora apenas 2% das propriedades localizadas na Amazônia e no Cerrado sejam responsáveis por 62% do desmatamento ilegal na região, uma parcela desse devastação está ligada a commodities agrícolas de exportação.

Os pesquisadores, liderados por Raoni Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais, da Universidade Federal de Minas Gerais, estimam que cerca de 20% da soja e pelo menos 17% da carne produzidas nos dois biomas e exportadas para a União Europeia estão “potencialmente contaminadas” com o desmatamento ilegal.

Já informado sobre o estudo, o vice-presidente Hamilton Mourão, que coordena o Conselho da Amazônia – e disse que conhece Rajão -, admitiu que os dados atrapalham a imagem do País e as exportações. “Óbvio que atrapalha. Mas a Agricultura está avaliando e assim que tiver os números corretos vai se contrapor e esclarecer.”

O Ministério da Agricultura, por meio de nota, não questionou os dados, mas pediu que não se “vilanize a agropecuária”. “Assim como o título do artigo induz e os dados demonstram, mais de 90% dos produtores rurais não esteve envolvido com qualquer tipo de desmatamento ilegal, com base na amostra de dados do estudo. Dessa forma, não podemos vilanizar a agropecuária”, afirmou a pasta. A Abiove, entidade que congrega as traders exportadoras de soja, afirmou que o trabalho traz uma “visão distorcida”. Leia mais sobre os posicionamentos ao final do texto.

No artigo publicado na Science, o grupo classifica essas propriedades como “maçãs podres do agronegócio brasileiro”, mas sugere que com as ferramentas já disponíveis, é possível que o governo haja com precisão a fim de conter o problema.

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Tanto as traders da soja quanto os frigoríficos que exportam a carne assumiram compromissos de não comercializar produtos provenientes de desmatamento ilegal – como a moratória da soja o termo de ajustamento de conduta da pecuária -, mecanismos que ajudaram a reduzir os níveis de desmatamento. Mas há ainda algumas brechas e falhas no rastreamento de toda a cadeia, principalmente no caso do gado, que facilitam a ocorrência de cortes da floresta.

Além de avaliar a rastreabilidade das cadeias como um todo e esses compromissos com desmatamento zero, os pesquisadores buscaram refinar a investigação até o nível da propriedade, avaliando onde provavelmente ocorreu desmatamento ilegal e foram produzidas as commodities exportadas.

O caminho da ilegalidade

Foram cruzados mapas de uso de solo e de desmatamento com informações de 815 mil propriedades com registro no CAR. No cadastro, há informações declaradas pelos próprios proprietários sobre seu cumprimento ao Código Florestal, como a presença de Reserva Legal e de área de preservação permanente. Um plantio ou uma pastagem dentro dessas áreas, por exemplo, foi considerado ilegal.

Eles compilaram também dados da Trase, uma ferramenta internacional de transparência focada em avaliar o risco para a floresta das cadeias de suprimento, e da guia de transporte animal (GTA), emitida quando animais são comercializados entre propriedades e frigoríficos.

Com base nessas informações, foi desenvolvido um software para calcular o nível de cumprimento da lei de cada propriedade, de modo a tentar diferenciar o que seria desmatamento potencialmente legal e ilegal junto com a produção de gado e de soja.

De acordo com trabalho, 45% das propriedades rurais da Amazônia e 48% do Cerrado que fornecem soja e carne para exportação não cumprem os limites do desmatamento estabelecidos no Código Florestal. Os pesquisadores afirmam que das 53 mil propriedades produtoras de soja nas duas regiões, 20% cultivaram soja em terras que tiveram algum tipo de desmatamento depois de 2008 – eles estimam que metade dessa soja foi produzidos em terras recentemente desmatadas ilegalmente.

A contaminação da soja

Como a moratória da soja é uma medida bem mais restrita, os pesquisadores olharam para desmatamento na propriedade como um tudo, e não somente para a área desmatada que seja ocupada com o plantio da soja. Neste caso, a estimativa é que apenas 1% da soja seja cultivado em local desmatado ilegalmente. Mas o valor sobe para algo entre 18% e 22%, quando considerado o imóvel rural como um todo.

“Se a moratória está sendo efetiva para evitar desmatamento nas áreas de soja, isso não significa que o sojicultor não desmate ilegalmente”, justifica Rajão. “Ele pode ser limitado pela moratória, mas não deixa de desmatar. Ele diversifica a estratégia dele de desmatamento (colocando pasto ou outros cultivos, por exemplo), para evitar as imposições. Por isso falamos que a soja está ‘contaminada’ com o desmatamento”, diz.

Ele lembra ainda que há uma pressão constante por parte dos sojicultores para que a moratória seja derrubada, o que, eventualmente, poderia legitimar uma soja que venha a ser plantada no futuro em um desses desmatamentos na propriedade.


De acordo com os pesquisadores, cerca de dois milhões de toneladas de soja cultivadas em propriedades que tiveram algum tipo de desmatamento ilegal podem ter chegado aos mercados da União Europeia por ano (desde 2008 até o ano passado): 500 mil toneladas seriam provenientes da Amazônia.

Fornecedores indiretos

Trabalhos anteriores já tinham alertado que a situação da cadeia da carne é a mais complicada, porque há muitas etapas. Em geral o bezerro nasce num lugar, engorda em outro, vai sendo transportado de uma propriedade a outra até chegar à final, que vende para o frigorífico. As empresas em geral monitoram o cumprimento da lei deste fornecedor direto, mas não dos indiretos, de modo que o desmatamento acaba passando na cadeia.

Na análise, os pesquisadores calcularam que entre as 4,1 milhões de cabeças negociadas em matadouros, pelo menos 500 mil cabeças provêm diretamente de propriedades que podem ter desmatado ilegalmente. Isso representa 2% da carne bovina produzido na Amazônia e 13% no Cerrado. A base de dados usada foi restrita aos dados do Pará e do Mato Grosso por dificuldade de acesso ao CAR de outros Estados.

Quando avaliados os fornecedores indiretos, por meio do fluxo de gado entre as fazendas, os autores estimam que cerca de 60% de todas as cabeças abatidas poderiam ter sido potencialmente contaminados com o desmatamento ilegal (44% na Amazônia e 66% no Cerrado) em algum ponto da cadeia de suprimentos. “Mapeamos os fluxos de gado de ponta a ponta. Se uma fazenda que não desmatou comprou 20% de seu gado ou mais de outras fazendas que desmataram, já consideramos que todo o gado dela estava contaminado com desmatamento”, explica Rajão.

Outro lado

A Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que congrega as traders da soja, afirmou, por meio de nota, que “a soja produzida em áreas desmatadas ilegalmente, embargadas por órgãos de fiscalização ambiental e incluídas na lista de trabalho escravo não entra na cadeia produtiva do setor” e disse que “essa é a forma como os exportadores podem garantir a legalidade da origem da soja e o cumprimento da Moratória da Soja na Amazônia”.

A entidade, porém, criticou o trabalho: “A Abiove ressalta que é responsabilidade da indústria verificar se a soja a ser originada foi produzida de acordo com a legislação vigente. O estudo provoca uma visão distorcida e gera um valor elevado de soja associada a desmatamento de forma equivocada, pois não indica quanto das áreas identificadas com desmatamento ilegal já estão efetivamente embargadas pelas autoridades competentes”.

E complementou: “Por ser um valor baixo, o estudo não demonstra as áreas de desmatamento legal e ilegal em que há produção de soja, optando por demonstrar o imóvel como um todo”.

A Abiove afirmou ainda que o “rigor na execução da moratória contribuiu para a queda do desmatamento da Amazônia associado à soja, uma vez que foram plantados apenas 80 mil hectares de soja em áreas desmatadas a partir de 2008”. A organização diz que ao ser identificada soja plantada de forma irregular, toda a propriedade é excluída da cadeia.

“No entanto, a fiscalização e regularização das atividades do produtor nos imóveis rurais é responsabilidade das autoridades competentes, responsáveis pelo embargo da propriedade como um todo e disponibilização das listas oficiais de crime ambiental e trabalho escravo. Sempre que uma propriedade é embargada por irregularidades, as compras são automaticamente suspensas”, afirmou.

“A responsabilidade sobre fiscalização das áreas sem soja não pode ser transferida para a indústria. Se a tecnologia para esse monitoramento já está disponível e os dados do CAR comprovam de forma objetiva que há desmatamento ilegal nas áreas que não fazem parte da cadeia da soja, cabe aos órgãos competentes a notificação e embargo das propriedades”, continuou.


Rajão confirmou ao Estadão que esse dado não foi avaliado no estudo e reconheceu que isso poderia diminuir o porcentual da soja contaminada exportada.

O vice-presidente Hamilton Mourão disse que recebeu a divulgação do estudo “sem estresse” e que, como coordenador do Conselho da Amazônia, já conversa com os pesquisadores. “Eu já tinha conhecimento desse estudo porque eu tenho tido bastante contato com o Raoni Rajão. É um dos cientistas ligados à área do meio ambiente que tem nos apoiado no conselho. Tenho consultado, ele já tinha me mandado esses dados. É um estudo. Nós temos que avaliar, verificar, nós temos que fazer isso com o Ministério da Agricultura”, disse.

O vice-presidente voltou a destacar a necessidade de investir na fiscalização na Amazônia, onde, segundo ele, “os problemas são gigantescos, não são resolvidos da noite para o dia, mas com ações continuadas”. “Nós temos que permanecer com esse tipo de ação e fiscalização até o final do nosso governo. Ou até que as pessoas se conscientizem que não pode mais desmatar”, pontuou.

Para Mourão, o estudo utiliza dados de uma área já desmatada e que a prioridade agora é evitar o aumento da devastação de novos territórios. “Existe uma área da Amazônia que já foi desmatada e não vai voltar atrás. Na minha visão, a maioria dessa produção que está colocada ali já vem dessa área, a área antropizada da Amazônia. Essa não tem mais volta. O que nós temos que impedir é que se avance para outras áreas”, argumentou.

O Ministério da Agricultura afirmou que entende que o combate à ilegalidade deve ser atacado. “O estudo também traz luz a importantes estratégias, como o avanço nas agendas da regularização fundiária e ambiental, bem como os incentivos à agricultura sustentável, com tecnologias de baixa emissão de carbono e agregação de valor nas cadeias da biodiversidade. Estas que já são agendas prioritárias do Ministério da Agricultura”, continuou.

O ministério disse ainda que, “por meio de tecnologias de intensificação sustentável e com regularização fundiária e ambiental, além do combate a ilegalidades, o Brasil pode aumentar a produção de alimentos sem o desmatamento ilegal dos biomas”. E afirmou que vai convocar os cientistas para avaliar detalhadamente cada conclusão do artigo.

A Associação Brasileira da Indústrias Exportadores de Carnes Industrializadas (Abiec) disse que não iria comentar o estudo. A reportagem também procurou o Ibama, mas não recebeu nenhum posicionamento. (Colaborou Jussara Soares)


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