2 casais realizam doação de rim simultaneamente no 1° transplante pareado do Brasil

David Machado/HC-FMUSP
Allan Nascimento e Ivana Nascimento (à esquerda), médico David Machado, Alessandra Bueno Perondini e Enzo Perondini Filho (à direita) Foto: David Machado/HC-FMUSP

No dia 10 de março de 2020, dois casais foram selecionados para participar do primeiro transplante pareado do Brasil. A cirurgia de doação de rim ocorreu no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) um dia antes de a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar a pandemia de Covid-19. As informações são da coluna Viva Bem do UOL.

Duas esposas e dois pacientes passaram por uma bateria de exames. Depois, elas realizaram uma espécie de troca nas cirurgias de transplante que ocorreram simultaneamente. Ivana Nascimento, de 33 anos, doou o seu rim para Enzo Perondini Filho, 58, e a sua esposa, Alessandra Bueno Perondini, 47, doou o rim dela para Allan Nascimento, 40, marido de Ivana.

O médico nefrologista do HC David Machado explicou que “a doação renal pareada (DRP) oferece a um par de doador/receptor incompatível a possibilidade de trocar o doador com outro par na mesma situação e realizar os transplantes, beneficiando ambos os receptores. A DRP se mostra como uma solução para resolver as incompatibilidades e aumentar o número de transplantes, diminuindo o tempo de espera e a fila com doador falecido”.

Allan e Ivana

O casal Allan e Ivana está junto há 15 anos. Quando tinha 28 anos, o comprador de tecidos começou a sentir dores nas juntas, no corpo e cãibra nas mãos e nos pés. Após os sintomas persistirem, ele resolveu procurar um posto de saúde e realizou alguns exames. Então, Allan recebeu o diagnóstico de insuficiência renal.

Prontamente, Ivana se ofereceu para ser doadora. Mas, infelizmente, não era compatível.

Com o quadro de saúde piorando, Allan começou a fazer, em 2013, hemodiálise três vezes por semana no HC. Depois, entrou para a fila de transplante renal.

Durante a espera, cinco pessoas compatíveis, entre tio, primo e amigos, se ofereceram para realizar a doação.

“Cada um deles passou por um processo que envolveu fazer diversos exames e avaliações. No final, eles foram descartados como doadores porque apresentaram algum problema de saúde no decorrer do processo, que durou em média de 9 a 12 meses”, disse Allan.

Enzo e Alessandra

O ex-fisiculturista – e oito vezes campeão brasileiro – Enzo Perondini descobriu que tinha uma doença renal em 2014. O diagnóstico veio quando procurou um médico para tratar de uma inflamação recorrente na planta de um dos pés.

“Os resultados (dos exames) mostraram que os níveis de creatinina e potássio estavam altos. Fiquei internado para investigar a causa e fui diagnosticado com hipertensão e com insuficiência renal.”

Então, ele iniciou um acompanhamento no setor de nefrologia do HC para tentar voltar com a função renal. Depois de um ano, o quadro de neuropatia atingiu os membros inferiores e Enzo perdeu as forças nas pernas e teve de começar a andar com a ajuda de uma bengala.

Em 2016, ele começou a fazer hemodiálise em uma clínica próxima a sua casa e, na sequência, entrou para a fila de transplante.

Sua esposa, Alessandra, se ofereceu para ser a doadora, mas eles não eram compatíveis e Enzo achou um absurdo ela se submeter a isso. “Minha maior preocupação era ela doar, ficar com um único rim e no futuro ter algum problema renal.”

Transplante pareado

Em 2018, Allan recebeu uma ligação da enfermeira Bruna Moura, que é coordenadora do ambulatório de transplante renal do HC, e soube do projeto inédito de transplante pareado.

“Ela me ligou para perguntar se minha esposa ainda tinha interesse em doar o rim, no impulso acabei dizendo que sim sem falar com ela. A enfermeira me explicou que um médico do HC, David Machado, estava desenvolvendo um projeto de pesquisa inédito que iria selecionar duas duplas para fazer o chamado transplante pareado que funcionaria assim: minha esposa doaria o rim dela para um paciente renal e um parente desse paciente doaria o rim dele para mim. Desliguei com a enfermeira e liguei para Ivana para contar o que tinha acontecido e para perguntar: você quer mesmo doar?”

Imediatamente, Ivana respondeu que sim e acrescentou: “Sempre quis, nunca titubeei. Assim que Allan me falou, acreditei na proposta do projeto, vi como uma super oportunidade, sabia que tinha chegado a hora dele. Como mulher, companheira e amiga, via o sofrimento dele e queria poder ajudar a reverter a situação. Não me incomodou saber que meu rim iria para outra pessoa, o importante é que meu marido seria beneficiado com a minha ação”.

Enzo e Alessandra também foram informados a respeito do projeto.

“Ele (doutor David Machado) me explicou o procedimento por cima, vi com bons olhos, mas tinha resistência em aceitar a ideia da minha esposa ser doadora, conversei com ela e aos poucos fui mudando meu pensamento”, disse Enzo.

“Quando meu marido me contou do projeto, falei que queria participar. Por mais que dentro do possível o Enzo lidasse bem com o fato de fazer hemodiálise, era um tratamento cansativo e que o limitava. Ao saber que eu poderia melhorar a qualidade de vida dele de alguma forma, não pensei duas vezes”, relatou Alessandra.

O médico David Machado explicou que, por mais que seja algo revolucionário, não é qualquer dupla que está habilitada para fazer o transplante pareado.

“Pacientes que têm doadores vivos compatíveis do ponto de vista do sistema ABO (que classifica os grupos sanguíneos em tipos A, B, AB e O) e a compatibilidade tecidual podem fazer o transplante com seus doadores. O ineditismo desse projeto de cruzar doador/receptor com incompatibilidade sanguínea ABO ou imunológica tecidual, buscando a compatibilidade com outras duplas, resulta na conclusão de dois doadores e dois receptores renais compatíveis.”

Os pacientes que têm incompatibilidade tecidual enfrentam dificuldades para realizar o transplante pois pode causar rejeição e perda imediata do enxerto renal.

“Estes compreendem 30% dos pacientes em lista de espera e somente 10% dos transplantes realizados. Tais pacientes ficam em média cinco anos em fila de espera, permanecem em diálise, estão inscritos na lista de espera para transplante com doador falecido mesmo tendo um doador disposto a doar. Assim a DRP é uma ótima alternativa.”

Resultado do primeiro transplante pareado

Dois anos depois da cirurgia, Ivana e Alessandra comemoraram a recuperação de seus respectivos maridos.

“Agradeço a Deus pelo privilégio de ter proporcionado isso a ele”, disse Ivana.

“Doar um órgão é uma das maiores demonstrações de amor que existem”, relatou Alessandra.

Enzo contou que tem por Allan o sentimento de irmandade. “Criamos um vínculo, a gente se chama de irmão de rim.”

“Nos falamos mais por mensagem, estamos tentando marcar um encontro pessoalmente para estreitar ainda mais o bom relacionamento que já temos”, disse Allan.

Transplante pareado não tem regulamentação no Brasil

Por mais que seja vista como uma esperança, a doação pareada ainda não é regulamentada no Brasil. Porém existe um projeto de lei (PL) em andamento.

O PL 95 de 2020 tem como objetivo alterar a lei n° 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

A mudança seria para permitir que a doação seja feita de maneira cruzada (pareada). “A aprovação permitiria a regulamentação desse ato médico e ampliação do alcance nacional”, comentou o médico David Machado.

O HC tem, atualmente, 40 duplas aguardando a seleção de novos pares de receptor e doador para realizar a doação renal pareada.