Uma estudante de boina vermelha com um cigarro aceso grudado nos lábios simula estar acorrentada aos portões de ferro da Cinemateca de Paris enquanto centenas de universitários grevistas flanam ao redor em busca de um sentido para suas inquietações. A imagem, uma performance de protesto cuja dimensão é bem mais estética do que ideológica, diz muito sobre o que andava pela cabeça dos jovens franceses naqueles turbulentos dias de maio de 1968. É uma tradução fiel da mítica que aqueles tempos produziram, ainda que seja fruto apenas da imaginação do diretor italiano Bernardo Bertulucci, que a incluiu em “Os Sonhadores” (2003). No filme, a encenação é um dos recursos para aproximar os protagonistas. Evidentemente inspirada em eventos da vida real, ela sintetiza aquilo que então estava mais em voga: revolta, desejo e adoração pelo espetáculo. Tudo isso iria se encadear de forma tão inesperada quanto explosiva na onda de manifestações iniciada por estudantes que evoluiu para uma greve de trabalhadores capaz de precipitar a renúncia do presidente Charles De Gaulle (1890-1970), ocorrida no ano seguinte. Passado meio século, os ecos daqueles dias ainda podem ser encontrados nas lutas que a juventude atual trava pelas mais variadas causas, do novo feminismo à legalização da maconha. Mas é inegável que boa parte da fúria dos universitários idealistas que queriam reescrever a História em maio de 1968 hoje aparenta ter sido motivada mais por impulso romântico do que por uma real vontade política.

Tudo começou na cama. No final de março, alunos da Universidade de Paris que residiam no campus da vizinha Nanterre ocuparam escritórios da unidade em um protesto que combinava a exigência de melhorias na qualidade do ensino e o direito a alojamentos mistos, onde pudessem praticar o sexo livre, a grande conquista daquela geração. A reação foi dura. Em 2 de maio, a escola não apenas foi fechada como as lideranças do movimento receberam ameaças de expulsão. O conflito rompeu os limites de Nanterre e ganhou adesão de alunos da Sorbonne, uma das mais influentes universidades do mundo, onde lecionava o brasileiro Fernando Henrique Cardoso, mais tarde senador, ministro e presidente da República por dois mandatos. “Em 68 as pessoas punham em dúvida o seu cotidiano, sua vida amorosa, sua família. Hoje, as pessoas não vivem isso com a dramaticidade daquela época”, diria Fernando Henrique quatro décadas depois, em uma entrevista sobre suas memórias daqueles tempos. Entre os alunos de sociologia que tiveram aula com o brasileiro estava Daniel Cohn-Bendit, conhecido como Dany le Rouge (o vermelho), que combinava influências marxistas e anarquistas em seus inflamados discursos como líder estudantil. A ele é atribuída a convocação de uma passeata com cerca de 2 mil estudantes, professores e simpatizantes — e que mudaria os rumos políticos da França.

É proibido proibir

A forte repressão policial à passeata foi o estopim de uma convulsão social. Apesar da violência sofrida e das centenas de jovens detidos, os manifestantes não arredaram pé. Reagiram atirando nos policiais paralelepípedos arrancados do calçamento das ruas. A determinação dos universitários em permanecer lutando por dias seguidos fez com que ganhassem a adesão de políticos, a começar pelo Partido Comunista Francês, e depois também dos sindicalistas. Uma greve geral de trabalhadores teve início em 13 de maio e durou até o fim do mês, quando o já enfraquecido presidente De Gaulle não teve escolha senão antecipar as eleições. No ano seguinte, ele renunciou ao cargo. O movimento grevista, do qual participaram dois em cada três trabalhadores franceses, foi esvaziado com promessas de aumento salarial e redução da jornada de trabalho. Passado o furor dos primeiros dias, com o silenciar das palavras de ordem “É proibido proibir” e removidos os cartazes que haviam coberto os muros de Paris, os estudantes também voltaram à rotina, com ao menos uma conquista importante: a reforma universitária, que instituiu o conceito de pluridisciplinaridade.

Colocado na devida perspectiva histórica, maio de 1968 foi o resultado de uma combinação de fatores que, em diferentes países, inspiraram revoltas. Havia a oposição à guerra travada pelos EUA no Vietnã, a luta pelos direitos dos negros e das mulheres, luta armada na América Latina e na África, além da Revolução Cultural maoista na China. Como seus ancestrais que dois séculos antes levaram nobres à guilhotina, os sonhadores de 1968 acreditaram que só a revolução iria levá-los a um futuro mais igualitário, livre e fraterno. Se suas convicções não foram suficientes para mudar a História, ao menos acrescentou a ela um capítulo que merece ser conhecido e celebrado.