chamada.jpg
VIDA PRIVADA
A tela “Estudo de Mulher”, de Rodolfo Amoedo, ilustra como
o desejo era retratado nas artes no século XIX. Na vida real,
porém, o sexo nunca foi visto pelo ângulo da intimidade

Durante a visita que o rei Henrique II da França e a sua mulher, Catarina de Médici, fizeram à Normandia em 1550, os marinheiros os homenagearam com a apresentação de um grupo de dança composto por 50 índios tupinambás cobertos apenas por grafismos feitos com tinta à base de urucum. Nada tinha espantado tanto os europeus quanto essa nudez – nem mesmo o canibalismo, já extensamente documentado pelo navegador Américo Vespúcio. O que se assistiu na pequena cidade de Rouen foi o nascimento de uma fascinação pela sexualidade tropical, sentimento ambíguo que permanece intacto até os dias de hoje. O pensador holandês Gaspar Barléu resumiu esse fascínio com um pequeno elogio, mais tarde resgatado pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda e posteriormente musicado por seu filho, o cantor e compositor Chico Buarque: “Não existe pecado do lado de baixo do Equador.” Essa passagem histórica é lembrada pelo sociólogo paulista Paulo Sérgio do Carmo, autor do livro “Entre a Luxúria e o Pudor: a História do Sexo no Brasil” (Octavo). Na obra, o episódio dos tupinambás foi resgatado justamente para ser subvertido em sua aparente verdade: Carmo consegue provar que a manifestação da sexualidade no Brasil é mais complexa, mais repleta de cores, cheiros e nomes do que se ousa imaginar. “É uma história de migalhas. Pouca gente deu importância à intimidade dos aposentos e justamente por isso eu quis adentrá-los e recuperar o que acontecia entre suas quatro paredes”, diz o autor.

Por meio de uma série de relatos, o livro revela que a forma como o brasileiro lidou com o sexo desde o século XVI era marcada por embates e contradições: episódios de liberdade sexual e moralidade religiosa, desejo da carne e força da hierarquia, sentimento libertário e repressão. Os personagens desses conflitos são índias, madames, escravos, padres, prostitutas, imigrantes, feministas e escritores cujas histórias mostram que o país do Carnaval, supostamente liberto das amarras do pudor, é antes de tudo uma nação profundamente conservadora. O relato de uma meretriz carioca chamada Edith, datado do início do século XX (período que coincidiu com a entrada de prostitutas europeias no mercado do sexo no Brasil), ilustra bem essa dualidade: para ela, as práticas mais “estranhas” adotadas pelas estrangeiras, como o sadomasoquismo, eram provas de “sujeira” e depravação.

img.jpg

“O pudor torna a luxúria mais interessante”, diz Carmo, para quem tais depoimentos, aparentemente sem importância, são bastante reveladores da moral vigente em cada período estudado.

Antes de se dedicar ao tema da sexualidade, ele estudava o universo do trabalho na sociedade brasileira. Ao levantar dados sobre o papel dos índios, escravos e imigrantes na economia, percebeu a importância das questões eróticas nesse jogo de forças. Casos de sodomia, adultério e bestialidade, negligenciados pela versão oficial dos fatos, abriram um novo horizonte de pesquisas: “Gilberto Freyre contou parte dessa história, mas do ponto de vista da casa-grande. Eu preferi a senzala”, afirma ele. Interessado em documentos narrados em primeira pessoa, Carmo consultou os arquivos do Santo Ofício, diários de viagem dos exploradores e conhecidos clássicos da história brasileira. A pesquisa se estendeu por nove anos e lhe propiciou preciosos fragmentos reveladores da intrincada relação entre o desejo e o poder no período colonial: “Um dos relatos que mais me instigaram foi o do sinhozinho branco que, ao casar com a sinhazinha branca, teve de buscar a roupa da negra, com seu cheiro de suor, para despertar seu apetite sexual. Tinha sido ela, a escrava, a responsável por sua iniciação.”  

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

 

img1.jpg


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias