Os espectadores da peça BR3, encenada em São Paulo ao longo do rio Tietê pelo grupo Teatro da Vertigem, chegam desconfiados ao ponto de embarque. Prestes a pisar no Almirante do Lago, o barco que serve de platéia, sentem o gás sulfídrico, um subproduto da poluição, penetrar-lhes as narinas e quase desistem da travessia. À medida que os pés cruzam a prancha de acesso, o sonho de navegar pelo rio vence o medo do desconhecido e o fantasma do lixo flutuante. A peça fica em cartaz até 28 de maio. Em julho, uma exposição a céu aberto reunirá nas margens trabalhos de artistas plásticos e poetas como Guto Lacaz e Haroldo de Campos. Precipitada para alguns, a propagada ressurreição do trecho metropolitano do rio faz com que a população se aproprie dele. “Esperar o Tietê ficar limpo seria a mesma coisa que aguardar um doente receber alta para visitá-lo”, compara Roberto Áudio, protagonista da peça. “Quem mora na capital só lembra que existe um rio entre as marginais quando há enchente. Com BR3, queremos mostrar que o Tietê precisa ser acolhido”, diz o diretor Antônio Araújo.

Em uma das apresentações, uma ratazana entrou em cena e surpreendeu os atores. É raro encontrar outros animais por ali. Não há vida submersa devido aos poluentes e à escassez de oxigênio. Enquanto o mínimo necessário para a vida são oito miligramas de oxigênio por litro de água, o rio se arrasta com menos de seis na capital. Ao encontrar o rio Pinheiros, a taxa cai para dois miligramas por litro e a morte vem enfeitada por blocos de isopor e garrafas pet. Ninguém ratificaria hoje o nome Tietê, “rio verdadeiro” em tupi. “Ele recepciona quem chega à capital, tanto pelo aeroporto quanto pela rodoviária. Deveria ser motivo de orgulho, e não de vergonha”, diz o fotógrafo César Diniz, que prepara um livro sobre o rio.

A situação já foi pior. Na década de 80, o trecho morto do Tietê chegava a 300 quilômetros. Hoje, é três vezes menor. Em 1991, a Fundação SOS Mata Atlântica lançou uma campanha ambiental que culminou com o programa de revitalização lançado pela Sabesp, companhia de saneamento do Estado. Em 15 anos, foram construídas cinco estações de tratamento de esgoto e uma extensa rede coletora que estará pronta em novembro. “Demorou um século para que os ingleses recuperassem o Tâmisa. A receita é parar de lançar carga poluente”, afirma Malu Ribeiro, coordenadora de recursos hídricos da Fundação.

A industrialização fez aumentar o fluxo de poluentes no rio desde a primeira década do século XX. Em 1940, tiraram as curvas do leito na área metropolitana para permitir o tráfego de carros nas margens, acabando com as correntezas. Superpovoaram a várzea, necessária para comportar água nos períodos de cheia, e, a partir de 1970, com a ampliação das marginais, arrancou-se a mata ciliar, tornando raridade qualquer vestígio de vida.

Hoje, 40% do esgoto que chega ao Tietê é tratado. A meta é alcançar 100% até
2010. O projeto já consumiu US$ 2,1 bilhões e totalizará US$ 3 bilhões até lá.
Logo será difundida a navegação, mas dificilmente alguém voltará a nadar no local antes de 2050, o que entristece dona Margarida Ghezzi, 91 anos. Ela deu suas primeiras braçadas no Tietê na década de 30 e integrou, durante 15 anos, o time
de remo do Clube Esperia. Hoje, culpa o descaso da população. “Uma vez, vi uma senhora parar o carro em cima da ponte para jogar um saco de lixo. Tive vontade
de jogá-la junto”, admite. Seu sonho? Banhar-se uma última vez nas águas renovadas do “rio verdadeiro”.

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