FOLHA PRESS

REFLEXÃO A igreja do papa Bento XVI quer mostrar as variações do pecado no mundo moderno

 

Igreja Católica quer mostrar para seus fiéis as novas faces do pecado na sociedade contemporânea. A largada foi dada pelo bispo Gianfranco Girotti, integrante da Penitenciaria Apostólica, um tribunal da Cúria Romana que trata de questões de consciência, durante uma entrevista concedida ao jornal oficial da Santa Sé, L’Osservattore Romano, após a conclusão de um curso de atualização do sacramento da confissão para sacerdotes.

Girotti avaliou que os pecados cometidos atualmente têm um impacto social, principalmente por causa da globalização. “Antes, eles tinham uma dimensão individual”, explicou. A partir dessa conclusão, ele discorreu sobre o que também é pecado a partir de agora. A manipulação genética, incluindo o uso de embriões, os danos ao meio ambiente e o uso de drogas formam essa lista. A grande preocupação são as questões que envolvem a bioética, na qual, segundo o membro da hierarquia romana, “há violações dos direitos fundamentais do ser humano, com resultados difíceis de prever e controlar”. O tráfico e o consumo de drogas aparecem como “um perigo que enfraquece a psique e obscurece a inteligência, deixando muitos jovens fora da Igreja”. Outra grande ofensa são as desigualdades sociais. Para o bispo, os católicos devem pedir perdão e fazer penitência por “alimentar uma insuportável injustiça social”. Fechando a lista de pecados, os crimes ecológicos, “que hoje despertam grande interesse”.

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Para dom Pedro Stringhini, bispo auxiliar de São Paulo, a Cúria Romana está querendo fazer uma reflexão atualizada do sentido do pecado, que é uma ofensa ao ser humano. “O meio ambiente, por exemplo. Há 50 anos, quem se importava com alguém que jogava garrafas de plástico na rua?”, indaga. Stringhini lembra que o pecado social é não só estrutural, mas também individual. “A avareza, por exemplo, um dos sete pecados capitais, é também a ganância de alguns em detrimento de outros e, portanto, um pecado social”, acredita.

O professor Antônio Flávio Pierucci, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), tem linha de raciocínio diferente. O curioso desses pecados sociais, segundo ele, é que a religião é sempre a salvação do indivíduo, não da coletividade. Ou seja, para os cristãos, o pecado é individual e o arrependimento é pessoal. “Quem tem culpa do pecado social? Quem toma banho demorado peca? A pessoa precisa se confessar por causa do aquecimento global do planeta?”, argumenta. O professor suscita outra questão. Para ele, a igreja não está preocupada em refletir sobre os crimes ecológicos ou o tráfico de drogas. O ponto nevrálgico é a manipulação genética, cujo debate, tal qual no Brasil, também está movimentando a Itália. “A estrutura lógica do discurso católico é incapaz de acompanhar a abertura dos enunciados científicos, por isso ela toma essas atitudes”, considera.

Independentemente dos motivos que a impelem, a Igreja Católica sob o comando do papa Bento XVI sabe que está inserida num mundo secularizado e quer enfrentá-lo conhecendo as armas do inimigo. “Para a consciência da sociedade de hoje, o apelo ético a responsabilidades sérias pode funcionar muito mais e melhor do que insistir em vícios de conduta, como vaidade e avareza”, diz o teólogo jesuíta João Batista Libânio, autor de diversos livros sobre política eclesial romana. “E, por mais que o atual papa seja um fiel e rigoroso cumpridor das leis, ele também é um intelectual, o que o faz refletir sobre a defasagem de certas idéias e a gravidade de determinadas situações”, completa o jesuíta, que conviveu com Bento XVI durante a juventude.

ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHA IMAGEM

DESIGUALDADE Ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres: pecado moderno

GEORGE OSODI/AP

DEVASTAÇÃO Fiéis devem pedir perdão e fazer penitência por crimes contra a natureza

SHUTTERSTOCK

BIOÉTICA O mundo desconhecido da manipulação genética é o que mais aflige o Vaticano

Não foi o próprio papa quem deu essas declarações sobre os novos pecados sociais e sim um membro destacado de sua hierarquia, que dificilmente desenvolveria um discurso contrário ao do chefe supremo. Mas, num primeiro momento, é de se estranhar que o rigoroso teólogo alemão, que durante anos conduziu com mãos de ferro a Congregação para a Doutrina da Fé no pontificado de João Paulo II, voltasse ao tema da dimensão social do pecado. Esse tema foi difundido a partir da década de 70 pela igreja latino-americana, estimulada pelos teóricos da teologia da libertação que o então cardeal Joseph Ratzinger tanto criticou e combateu.

É sabido que a intenção da Igreja Católica é endurecer na exigência do cumprimento de seus preceitos para que em suas fileiras fiquem apenas os “verdadeiros cristãos”, aqueles que efetivamente seguem a religião como ela é, com todas as suas regras, ritos e imposições. Para que sobrem poucos, mas bons, e esses funcionem como fermento, fazendo-a crescer, novamente, com solidez. “Esse movimento da igreja nada mais é do que um fenômeno sociológico”, diz Libânio. “Os radicais se unem, depois deixam de ser tão radicais. Foi assim com os cristãos até o quarto século, é assim com os partidos políticos.”


O fato é que as declarações de Girotti estão inseridas num contexto de crise do sacramento da confissão. Na Itália, 60% dos católicos afirmam não se confessar da maneira clássica e convencional, com um padre ou bispo à sua frente, preferindo a conversa “pessoal e íntima com Deus”. E essa debandada dos confessionários não é privilégio italiano. “É só observar durante os domingos pela manhã, horário nobre dos católicos”, ensina dom Stringhini. “A fila da comunhão é muito maior do que a das pessoas que se confessam.”

O catolicismo não exige que seus fiéis corram às sacristias a cada pecado cometido. O recomendável é que se procure um confessor até 20 dias depois da falta cometida. Além disso, os pecados variam muito conforme sua gravidade. Há os veniais, que são considerados matéria leve, apenas uma desordem moral facilmente reparável. Há os capitais, que a experiência cristã estabeleceu como vícios de conduta. E há os mortais, considerados matéria grave, cometidos com plena consciência e deliberadamente. A estratégia para trazer o rebanho de volta é acrescentar mais itens à lista de pecados – e não amenizar os já existentes.


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