O ministro da Justiça, Tarso Genro, envia esta semana ao Congresso Nacional um projeto de lei endurecendo a prática de escuta telefônica. A nova legislação prevê que os trechos não utilizados pela polícia sejam destruídos. O prazo da gravação passa dos atuais 15 dias (renováveis por tempo indeterminado) para 60 dias. Com a diferença de que, agora, a renovação do grampo só poderá chegar a, no máximo, 360 dias. E o Ministério Público vai fiscalizar a arapongagem. “A idéia é não ter escuta com prazo indefinido”, diz o secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay. A medida vem bem a calhar e deve tramitar no Congresso com rapidez. Motivo: a informação, resultado de levantamento oficial feito pelas operadoras de telefonia, de que 409 mil telefones foram legalmente grampeados em 2007 gerou uma súbita sensação de perda geral de privacidade em quem estava presente à sessão da CPI do Grampo, na Câmara dos Deputados, há duas semanas. Foi como um desnudamento.

Ex-delegado da Polícia Federal e provável autor de vários pedidos de quebra de sigilo telefônico, o presidente da CPI, deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), acha o número estarrecedor. “Se você levar em conta que cada dono de telefone liga no mínimo 50 vezes para pessoas diferentes em um mês, basta fazer a multiplicação”, diz Itagiba. Isso elevaria para 20 milhões o número de pessoas com as conversas gravadas. E só grampos legais. Acrescentem-se a estes os cerca de dois milhões de linhas convencionais grampeadas anualmente sem autorização judicial e chega-se à conclusão de que o País se transformou numa imensa “grampolândia”.

grampeado1_38.jpg

 

“É um estado de neurose ampla, geral e irrestrita”, assusta-se o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cézar Britto. Ele compara a situação ao cenário descrito pelo escritor inglês George Orwell em 1984, uma ficção científica que imagina um Estado totalitário, no qual as pessoas são vigiadas 24 horas por dia por uma entidade batizada de “Grande Irmão” (o livro de Orwell é o inspirador do reality show Big Brother). “O 1984, de Orwell, está mais vivo do que nunca”, avalia Britto. O dramático é que essa invasão de privacidade, muitas vezes tornada pública, destroça a carreira e as famílias das vítimas, que tiveram o sigilo quebrado indevidamente.

SHUTTERSTOCKA banalização da grampolândia provoca a invasão generalizada da intimidade e da vida privada dos atingidos, numa tentativa de desmoralizá-los publicamente. O caso mais emblemático de uma escuta que quase destrói a vida da vítima atingiu a procuradora-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas de Brasília, Cláudia Fernanda Pereira, que investiga o crime organizado nas instituições públicas. Todas as conversas íntimas dela com o marido e com as amigas a partir de 2006 foram gravadas ilegalmente e depois distribuídas em forma de CD aos conselheiros do tribunal e aos deputados distritais. O pai da Cláudia, cardíaco, recebeu um dos CDs, teve problemas de saúde e faleceu 15 dias depois. Outras 19 pessoas tiveram as conversas gravadas no mesmo grampo ilegal, entre elas o então ministro do Esporte, Agnelo Queiroz. Os policiais civis Horácio Ferreira Rego e Edson Alves Crispim foram presos, acusados de envolvimento com a ilegalidade. Além de distribuir os CDs, os operadores do grampo passaram a mandar mensagens sistemáticas ao celular de Cláudia com agressões e palavras de baixo calão. Segundo as investigações preliminares, por R$ 2,5 mil foi possível contratar um especialista para instalar um gravador no armário de distribuição dos cabos eletrônicos nas proximidades do prédio da procuradora, no Sudoeste (bairro nobre de Brasília). As gravações foram registradas em nove fitas cassetes, de uma hora cada. “Foi terrível, muito difícil”, diz Cláudia. “É preciso criar mecanismos para acabar com a banalização do grampo. Principalmente quando ocorre contra um agente do Estado no exercício de suas funções.”

Mas mesmo os grampos legais não estão isentos de causar arbitrariedade. Engenheiro florestal com 23 de anos de serviço público, dois filhos, um apartamento de três quartos e dois carros Gol, o diretor de Biodiversidade do Ibama, Antônio Carlos Hummel, foi acusado de envolvimento com uma quadrilha que vendia autorizações para desmatamento, presa na Operação Curupira, em 2005. “Fui detido três dias. Isso é muito forte, é muito pesado”, lamenta Hummel. “Ser honesto neste país às vezes dá cadeia.” Num primeiro momento, o procurador que o indiciou, Mário Lúcio Avelar, constatou, a partir de conversas de funcionários do Ibama que pertenciam à quadrilha, que Hummel teria autorizado operações ilegais que levaram à comercialização de dez milhões de metros cúbicos de madeira. A Polícia Federal, no entanto, após cruzar as escutas em mais de 90 linhas, não encontrou nada que pudesse comprometer Hummel. Depois de passar três noites na cadeia, o engenheiro soube, pelo procurador, que seria solto. Só então iriam ouvilo. Segundo o delegado federal Tardelli Boaventura, responsável pelas investigações da Curupira, “no final, o procurador concluiu que não deveria sequer tê-lo indiciado”.

Mesmo quando reconquistam os cargos no setor público, muitos funcionários que têm o sigilo quebrado continuam enfrentando por muito tempo o preconceito dos colegas. Às vezes, os danos são irreversíveis. Em 2001, o executivo paulista Domenico Montone foi alvo de investigação ilegal pela americana Kroll Associates, a pedido da empresa onde trabalhava, a indústria de autopeças Arteb. A empresa suspeitava que o executivo, diretor de engenharia, estivesse envolvido num esquema de corrupção na Arteb. A empresa teve acesso ao extrato de conta em nome de Montone. Descobriu, segundo relatório da PF, que o engenheiro mantinha aplicações nos bancos Santander, BankBoston, Itaú, Banespa, Bradesco, Unibanco e Banestado. Mas nada foi descoberto que pudesse desaboná-lo. Na ocasião, Montone chegou a desconfiar que tivera todos os seus sigilos – bancário, telefônico e fiscal – quebrados. Depois de descobrir que estava sendo bisbilhotado pela empresa onde trabalhava havia mais de 28 anos, ele largou o emprego, pelo qual recebia R$ 25 mil mensais, e impetrou ação na Justiça contra a Kroll. “Foi um baque em minha vida”, disse a amigos. Hoje, Montone presta consultoria a R$ 6 mil por mês.

As empresas de espionagem internacional, segundo constatou a Polícia Federal, costumam terceirizar seus serviços. Elas subcontratam policiais e pagam por tarefas, que incluem levantamento de dados sigilosos em órgãos públicos. Com isso, “terceirizam” também a responsabilidade pela quebra do sigilo bancário, telefônico e fiscal do investigado. As buscas da PF mostram, por exemplo, que a agência de investigação On-Line Security EG Sistemas de Segurança Ltda., do israelense Avner Shemesh, com uma base em São Paulo, tem entre seus quadros três agentes da Polícia Militar do Estado.

Para o Ministério da Justiça, o aumento do número de escutas se deve ao novo modelo de inteligência das polícias, que estão dando ênfase à captura das quadrilhas. Hoje, as polícias filmam entregas de malas de dinheiro e só prendem a quadrilha quando identificam os corruptos e os líderes de organizações criminosas. O diretor-geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, não acredita que haja abuso. “É um número agressivo talvez comparado com o nada que se fazia”, diz Corrêa. “Os números estão dentro da normalidade porque estão sob o controle do Judiciário.”