Numa recente conversa no Palácio do Planalto, um grupo de amigos de Lula lembrou que Juscelino Kubitschek morava em um apartamento na avenida Atlântica, então um dos endereços mais chiques do Rio de Janeiro. E que esse fato foi diversas vezes usado pelos inimigos de Juscelino para denunciar que ele vivia acima dos padrões que seus rendimentos permitiam. Comentava-se na conversa que JK e vários outros políticos teriam sido beneficiários de uma espécie de mecenato político: a ajuda “desinteressada” de amigos mais ricos, que simplesmente acreditavam nas idéias e projetos desses líderes. Por que o mesmo não poderia ocorrer com Lula? A conversa, na verdade, era o reflexo de um temor demonstrado pelo próprio presidente, a cada dia mais presente em sua agenda.

Lula acha que as linhas de investigação que seguirão o rastro dos relatórios da CPI dos Correios e do Ministério Público sobre o mensalão, assim como as ações dos partidos de oposição na CPI dos Bingos, se centrarão em dois pontos fundamentais. O primeiro: a relação do presidente com amigos e “compadres” como o advogado Roberto Teixeira, o presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Paulo Okamotto, e o empresário do ramo de informática Mauro Dutra, dono da Novadata. Em algum momento da vida do presidente, os três prestaram favores a Lula. Pode até ter sido fruto do mecenato “desinteressado” mencionado na reunião, mas as dores de cabeça para o presidente já estão aí. “É inevitável. O caminho que leva a Lula passará obrigatoriamente pela ação dos seus compadres”, comenta o deputado Pauderney Avelino (PFL-AM).

Na quarta-feira 19, o senador Almeida Lima (PSDB-SE) conseguiu as 34 assinaturas necessárias para abrir no Senado uma CPI exclusiva para investigar as relações pessoais e profissionais de Lula. Sua abertura e instalação, no entanto, vão depender do humor do presidente da Casa, Renan Calheiros. Mas, de todo modo, o primeiro passo já foi dado – e na direção certa.

O sentimento que parte do próprio Lula é o de que ele próprio terá desgaste na arena política da CPI dos Bingos. De fato, toda a tática da oposição consiste agora em escarafunchar a vida dos “compadres” do presidente, especialmente Okamotto e Roberto Teixeira. Okamotto é o centro do alvo que a oposição busca acertar. Ele afirma ter pago do próprio bolso uma dívida de R$ 29 mil de Lula com o PT. Também teria aberto a carteira para quitar R$ 30 mil em dívidas de uma campanha para vereadora em São Bernardo do Campo de Lurian Cordeiro, a filha de Lula que hoje mora em Blumenau, Santa Catarina. A primeira tentativa da CPI de quebrar o sigilo de Okamotto foi negada por uma liminar do Supremo Tribunal Federal. Agora, o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) tenta novamente. Em seu requerimento, ele pede para investigar até as contas da mulher de Okamotto, Dalva. De acordo com um petista próximo ao presidente, Lula tem mesmo razões para temer a quebra do sigilo de Okamotto e as investigações sobre ele. O presidente do Sebrae exerceu por um bom tempo o papel de “quebra-galho” do presidente, resolvendo desde pequenos embaraços financeiros até problemas pessoais mais complicados.

O segundo nome na lista de amigos complicados é o advogado e empresário Roberto Teixeira. Por oito anos antes de comprar seu próprio apartamento, Lula morou sem pagar nada na casa de Roberto Teixeira em São Bernardo. Denuncia o ex-secretário de Finanças de São José dos Campos, o ex-petista Paulo de Tarso Venceslau, que Teixeira esteve à frente de um esquema que procurou irrigar o caixa 2 do PT a partir de recursos desviados das prefeituras que o partido administrava na década de 90. Esses partidos assinavam contratos com a Consultoria para Empresas e Municípios (Cpem), à época dirigida por Teixeira. Nenhum tipo de serviço vinha, diz Venceslau, como contrapartida do dinheiro que as prefeituras pagavam por esses contratos.

Dos três amigos, Mauro Dutra é quem hoje está mais na linha do sentimento de Lula do que das ações concretas da oposição. Dutra foi investigado pela CPI dos Correios. Um contrato da ECT com a Novadata foi mencionado na fita de vídeo em que o ex-chefe do Departamento de Compras e Administração de Materiais da empresa Maurício Marinho é flagrado recebendo uma propina de R$ 3 mil. Tratava-se de um contrato adicional, uma repactuação, de R$ 5,5 milhões no fornecimento de computadores da Novadata para os Correios, sob a alegação de que entre a assinatura e a entrega dos equipamentos houve uma disparada do valor do dólar. Um contrato em que, diz o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) no relatório final da CPI, houve “irregularidade grave”. Segundo Serraglio, a repactuação não respeitou nem o preço de mercado dos computadores nem a variação da moeda. Se Dutra não está hoje na mira das ações mais imediatas da oposição, Lula acha que nem por isso ele está livre de se ver incomodado mais adiante. Entre os favores prestados pelo empresário a Dutra está o réveillon de 2001. Foi na mansão de Mauro Dutra, em Búzios, no litoral do Rio de Janeiro, que o hoje presidente passou o feriado. Na companhia de quem? Da família de Paulo Okamotto. Os “compadres” se misturam.

Há ainda um quarto nome, não mencionado pelo presidente, mas que surge em conversas de pessoas próximas a ele: o fazendeiro José Carlos Bunlai. Lula várias vezes foi pescar nas propriedades de Bunlai no Pantanal. O fazendeiro lhe manda carne e até um churrasqueiro para as suas reuniões no Palácio da Alvorada. Há quem já esteja de olho nas relações de Bunlai com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Na verdade, Lula sabe que no tiroteio político que se seguirá contra ele não há mais alvos secundários a serem atingidos. É como se ele hoje fosse o rei de um jogo de xadrez em que não há mais a proteção da rainha, das torres, dos bispos ou dos cavalos. Só lhe resta o exército de peões que ainda lhe garante uma faixa de preferência em torno de 40% nas pesquisas eleitorais. E o que busca a oposição é fazer com que essa tropa, até a eleição, deserte.

Nas conversas com os interlocutores que lhe restam, o presidente reclama que as ações daqueles em quem depositou confiança impediram que ele exercesse um governo melhor. Nessas conversas, Lula repete que figuras como José Dirceu montaram no poder um projeto paralelo. E foi esse o esquema que caiu agora. É por conta da sustentação dessa linha de raciocínio que Lula deu aval ao presidente da CPI dos Correios, senador Delcídio Amaral (PT-MS), para trabalhar pela aprovação do relatório final, a despeito do ódio eterno do PT. Enquanto puder, Lula procurará distinguir-se do que fez seu partido. Ou, como prefere, do que fez parte do seu partido. A tarefa da oposição é derrubar essa estratégia. Seja a partir do grau de conhecimento que o presidente tinha dos escândalos, seja pelo tamanho dos favores que eventualmente recebeu de seus “compadres”.