A crise da Varig agravou-se nas últimas semanas e foi amplamente noticiada em jornais, rádios e tevês de todo o País. Mesmo assim, milhares de passageiros e funcionários continuaram a embarcar nas aeronaves da companhia, numa prova contundente de que o peso da marca – construída nos últimos 79 anos – ainda fala mais alto do que os rumores de falência iminente. Não se mata uma empresa como a Varig, considerada um patrimônio nacional, de uma hora para outra.

Principal nome da aviação brasileira no País e no Exterior, a Varig não merece o descaso com o qual tem sido tratada pelo governo federal. O poder concedente faz parte do problema: a União deve R$ 4,5 bilhões à companhia, por conta da defasagem tarifária no governo Collor, e é sua maior credora, com R$ 3,3 bilhões a receber em dívidas com a Receita Federal e o INSS. Mesmo assim, esquiva-se da responsabilidade por sua solução. Se não aprova a saída de mercado – na terça-feira 18, a Agência Nacional de Aviação (Anac) protelou a autorização de compra da subsidiária Varig Log pela Volo, grupo que também ofereceu US$ 400 milhões pela empresa-mãe –, deveria levar a sério a proposta de estatizar a Varig.

Falar em estatização em pleno século XXI soa como heresia aos ouvidos de muitos governantes. Mas esta parece ser a melhor solução para o caso Varig. Não se trata, obviamente, de enterrar mais dinheiro público a fundo perdido numa companhia marcada pela má gestão de seus executivos e vítima de ações do próprio governo, como os planos econômicos que congelaram tarifas nos tempos de alta inflação. Muito menos de proteger os controladores, principalmente a Fundação Ruben Berta, dona de 87% das ações e co-responsável pelos erros administrativos do passado. A oportunidade que se apresenta é usar a mão forte do governo para preservar o interesse público, promovendo a troca de dívidas por ações e um encontro de contas que culmine com o saneamento financeiro e a sobrevivência da companhia. Num segundo momento, a Varig, depois da ação saneadora do poder público, poderia até ser privatizada novamente, ter o capital pulverizado nas Bolsas de Valores ou continuar estatal, como é comum em vários países europeus. Para levar a companhia a esse porto seguro, nomes não faltam entre os quadros do governo. Lá estão empresários de sucesso, como os ministros Valfrido dos Mares Guia, do Turismo, e Luís Fernando Furlan, do Desenvolvimento. Da iniciativa privada, com um telefonema o presidente Lula poderia sensibilizar nomes como os presidentes da Embraer, Maurício Botelho, ou da Vale do Rio Doce, Roger Agnelli.

Com a Varig encampada, o governo preserva uma companhia-chave num setor estratégico e, fundamental, salva mais de 50 mil empregos diretos e indiretos. O gesto serviria de estímulo, ainda, para acirrar a concorrência com a Gol, a Tam e as companhias aéreas internacionais, todas grandes interessadas na falência da Varig. Como se sabe, concorrência é sinal de benefícios aos clientes. Concentração, ao contrário, rima com aumento de preços e precariedade dos serviços. Por mais que a propaganda negativa cause turbulências à companhia, ela está provando toda a sua força. No mês passado, a Varig transportou nada menos que 840 mil passageiros e obteve receitas de US$ 204,2 milhões. Repita-se: quase um milhão de pessoas e meio bilhão de reais em caixa. Anualmente, a companhia leva 12 milhões de clientes em suas rotas domésticas e internacionais. São cerca de 300 vôos diários, que transportam três mil passageiros para 23 cidades no Exterior e 36 no Brasil. Somente com vôos internacionais, a Varig traz US$ 1,2 bilhão por ano ao País. Assim mesmo, em moeda forte.

Quando se trata de defender empresas de orgulho nacional em dificuldade, os governos dos países ricos não costumam se omitir. Não foi à toa que a ultraliberal Margaret Thatcher salvou a estratégica Rolls-Royce. Também não foi por acaso que o Congresso dos Estados Unidos aprovou um pacote de ajuda de US$ 15 bilhões às companhias aéreas americanas – todas privadas – apenas duas semanas após os atentados de 11 de setembro de 2001. Os ataques com uso de aviões comerciais agravaram uma crise de vários anos no setor, mas o governo americano agiu rápido.

A decisão de estatizar a Varig é evidentemente política – e a escolha não é tão martirizante assim. Afinal, deixar a empresa quebrar em nome da “solução de mercado” significa jogar no ralo o dinheiro de todos os cidadãos. As dívidas da Varig com as estatais e, também, com empresas privadas nunca mais seriam pagas. “Juridicamente, a obrigação do governo é defender o contribuinte”,  lembra o advogado Arnold Wald Filho, que atuou a favor da Varig em ações contra a União. “Pode emprestar dinheiro, converter crédito em ações, intervir para sanear. Pode até estatizar e revender a empresa depois de saneada”, afirma. Para o advogado especializado em recuperação judicial Charles Gruenberg, o Executivo poderia assumir o controle da Varig desde que obtivesse aprovação do conselho de credores e o acordo fosse aprovado pelo juiz responsável pela recuperação judicial em curso. Noutras palavras, a encampação é não apenas possível, como pode ser um ato jurídico perfeito. Basta que todas as etapas se cumpram.

Mesmo quem discorda da estatização, como o jurista Yves Gandra Martins, defende uma ação mais forte de Brasília. “Se a Varig for economicamente viável, o Estado deve fazer sua parte, que é ajudar através dos órgãos de desenvolvimento como o BNDES”, diz.

No governo, executivos muito próximos ao assunto estão preocupados. O atual presidente do BNDES, Demian Fiocca, diz que o banco de fomento se dispõe apenas a financiar algum investidor que apresente garantias, como fez a TAP na compra da Varig Engenharia e Manutenção (VEM). “Temos todo o interesse em ajudar a encontrar uma solução para a crise enfrentada pela Varig, mas existem limitações e regras que o banco tem de cumprir”, alega. O presidente da Infraero, tenente-brigadeiro da reserva José Carlos Pereira, defende uma tomada de decisão política. “Os valores estratégicos da Varig que interessam ao Estado precisam ser protegidos. O segredo é fazer isso sem violentar a lei”, afirma. “Como cidadão, farei todo o possível pela recuperação da Varig.”

Um plano de ação governamental já foi apresentado ao presidente Lula. Dois
anos atrás, à frente do BNDES, Carlos Lessa esquematizou a troca de dívidas
da companhia com as estatais por ações da própria Varig, numa espécie de estatização branca. Afinal, dessa maneira o governo passaria à posição de controlador e teria, inclusive, o direito de nomear o novo comando da empresa. A estratégia se desenvolveria em três etapas. Primeiro, o governo transformaria em ações as dívidas da Varig junto ao Banco do Brasil, à BR Distribuidora e à Infraero. Desta forma, passaria a ser acionista majoritário de uma empresa de capital nacional e prestígio mundial, cuja marca é avaliada em mais de R$ 1 bilhão. Com a empresa estatizada, já sob nova direção, o BNDES financiaria R$ 400 milhões para o plano de demissões voluntárias, o saneamento financeiro e o capital de giro. Em paralelo, seria feito um encontro de contas entre as dívidas da empresa junto à Receita Federal e ao INSS e os ganhos de causa da Varig na Justiça contra o governo. Em apenas dois anos, nesse modelo, a Varig estaria voando alto, em condições de ser devolvida ao mercado – aí sim, com todas as chances de ser disputada por alguns bilhões. O então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, vetou a solução. “Dois problemas impediram que o banco resolvesse a questão: de um lado, a Fundação Ruben Berta resistia a se retirar do comando. De outro, Fazenda e Previdência foram intransigentes no sentido de reduzir e remanejar dívidas”, escreveu Lessa sobre o assunto.

Por enquanto, o único poder que tem defendido a Varig é o Judiciário. A empresa encontra-se em regime de recuperação desde junho do ano passado. Na segunda-feira 17, o juiz Roberto Ayoub, da 1ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, defendeu publicamente a viabilidade da companhia. “Eu poderia decretar a falência da Varig hoje, mas não vejo justificativa para isso. Dados levantados pelo administrador judicial e pela Consultoria Alvarez & Marsal (contratada pelos credores para recuperar a Varig) nos dão a exata noção de que a situação é difícil, mas ainda é possível salvar a empresa”, afirmou Ayoub a IstoÉ na terça-feira 18. “Sou brasileiro e farei o possível, dentro dos limites legais, para evitar a falência.” No mesmo dia, a juíza Denise de Araújo Capiberibe, da 28ª Vara Cível do Rio, negou pedido de liminar da fornecedora Wells Fargo para retomar cinco turbinas usadas em aviões da companhia. A postura do Judiciário foi bem recebida. “O juiz do Rio de Janeiro deu a solução que todos nós esperávamos: determinou a reestruturação da companhia. O governo devia ter feito isso antes e ninguém sabe por que ainda não fez”, diz a deputada Yeda Crusius (PSDB), que lidera o Grupo Parlamentar em Defesa da Varig. “Ainda é tempo.”

Na sociedade, cresce o sentimento de que o governo deve sair da atual letargia. No dia 12, no Rio, artistas e passageiros históricos da companhia fizeram uma manifestação em apoio à companhia. Lembrou-se, ali, dos tempos em que os escritórios da Varig no Exterior equivaliam, com ganhos, às nossas embaixadas. Podia-se ler os jornais brasileiros do dia e seus gerentes ajudavam na solução de pequenos problemas típicos dos turistas. Até mesmo as duas centrais sindicais concorrentes, CUT e Força Sindical, assinaram documento em conjunto em defesa da companhia. Mas isso ainda parece pouco. A BR Distribuidora, maior fornecedora de combustível da Varig, cortou o crédito rotativo da empresa em janeiro, obrigando-a a a pagar antecipadamente. Isso retirou de seu caixa o equivalente a US$ 30 milhões. Duas semanas atrás, o presidente da Varig, Marcelo Bottini, procurou o presidente Lula para pedir alívio. Queria 30 dias de prazo no primeiro mês, 20 dias no segundo e dez no terceiro. Isso significaria um reforço no caixa no delicado momento da baixa estação e daria um fôlego até julho, quando a demanda dos passageiros é maior. Outras empresas, como Tam, Gol, BRA e até a novata OceanAir têm 30 dias de prazo para pagar o combustível. Lula não quis receber Bottini e despachou-o para a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil. A ministra delegou o assunto para dois assessores, Rodrigo Rodrigues e Marcelo Carvalho. Há duas semanas os executivos da empresa tentam falar com os dois funcionários, sem sucesso. “Está claro que o governo não quer nos ajudar”, afirma Bottini. “Mas o problema é que está nos atrapalhando, apertando o torniquete e divulgando notícias negativas para nos prejudicar”, desabafa.

Em vez de priorizar a solução do problema, o Executivo ensaia um Plano B, caso a Varig morra por asfixia e deixe de voar. Uma semana antes de protelar por pelo menos mais 15 dias a compra da Varig Log pela Volo (uma parceria de empresários brasileiros com o fundo americano Matlin Patterson), a Anac chamou os concorrentes internos e preparou um plano de contingência, em que os passageiros da Varig seriam atendidos nas rotas coincidentes. Os problemas seriam maiores nas rotas internacionais, das quais a Varig domina 80%. “Não é verdade que a empresa possa ser substituída imediatamente pelas congêneres nessas operações”, diz Bottini. O Brasil tem acordos bilaterais com outros países e os contratos prevêem a concessão das linhas para a Varig. “Os slots (horários de pouso e decolagem reservados em aeroportos no Exterior) são exclusivamente da Varig. Caso a empresa parasse de operar, seriam ocupados por empresas estrangeiras”, diz Graziela Baggio, presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas.

A proposta dos trabalhadores é que o governo defenda a Varig e dê suporte enquanto a empresa é preparada para a venda entre seis e 12 meses. “O governo tem dinheiro para muitas coisas, menos para preservar empregos”, reclama o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva. O fato é que o presidente Lula tem nas mãos uma oportunidade histórica. Depende dele o maior gesto do seu governo no quarto ano de mandato. O ex-sindicalista deveria ouvir um velho amigo, o jornalista Ricardo Kotscho. Em uma crônica sobre a empresa, Kotscho fez um apelo em nome de passageiros e funcionários: “A Varig não pode morrer.”