O economista que formulou o Bolsa Família explica por que a atual fase de crescimento é mais consistente que a da época da ditadura e reclama uma nova agenda para o Brasil

Em um encontro do PT, o economista José Márcio Camargo, 60 anos, teve suas idéias tachadas de “neoliberais”. Numa roda de tucanos paulistas, seria certamente lembrado dessa época em que militou no partido de Lula. Entre os heterodoxos da Universidade de Campinas, ele pareceria uma voz do chamado “mercado”. E mesmo na turma da PUC do Rio, onde tem uma cadeira de professor titular, suas propostas seguem a doutrina clássica da instituição, mas mantêm saudáveis divergências com as de Pedro Malan ou de Gustavo Franco. É assim, trafegando na contramão das mais estabelecidas escolas de pensamento econômico do País, que Zé Márcio, como é chamado pelos amigos, passou a oferecer inovadoras e bem-sucedidas idéias para os problemas nacionais. Em um artigo, há 15 anos, ele propôs a criação do que começou como Bolsa Escola e hoje se chama Bolsa Família. Em 2003, no início do atual governo, ajudou a colocar o projeto em prática – e hoje comemora os resultados do mais famoso programa social de Lula. Casado pela terceira vez, pai de um doutorando em filosofia, um estudante de economia e uma garotinha de dez anos, José Márcio Camargo diz por que o País mudou de patamar econômico. E explica como essa transformação cria uma nova agenda para o Brasil, o que afetará o debate da eleição presidencial de 2010.

 

AGLIBERTO LIMA/AE

"O Brasil gasta 22 vezes mais com um aposentado do que com um aluno do ensino fundamental”

 

DANIEL GUIMARÃES

“José Serra é a última liderança política da velha guarda e ele não deveria se colocar como candidato"

ISTOÉ – O Brasil mudou de patamar?
José Márcio

Não há a menor dúvida. O País mudou de patamar por várias razões.

ISTOÉ – Quais?
José Márcio

O número de reformas que foram feitas nas duas últimas décadas é impressionante. O presidente Sarney começou a fazer a reforma do Estado, que era extremamente desorganizado. Modernizou a Receita Federal e criou a Secretaria do Tesouro. O presidente Collor aprofundou a abertura da economia e começou as privatizações. O presidente Itamar Franco continuou a privatizar. Fernando Henrique Cardoso fez mais privatizações e promoveu uma série de reformas no mercado de trabalho, uma na Previdência e algumas reformas no mercado de crédito. Veio o Lula e com ele outra série importante: o crédito consignado e outra reforma da Previdência. O Brasil hoje é um País completamente diferente do que era há 20 anos.

ISTOÉ – O Brasil fez o dever de casa?
José Márcio

Fez. E, além das reformas, foram fundamentais os acordos com o Fundo Monetário Internacional. Eles nos ensinaram que ter responsabilidade fiscal, estabilidade e câmbio flutuante são essenciais para o crescimento futuro da economia.
 

ISTOÉ – Qual é o novo patamar do Brasil?
José Márcio

É um patamar muito mais estável. Até poucos anos atrás, todas as crises que o Brasil sofria vinham pelo lado financeiro. Como o Brasil dependia muito do fluxo de capitais, uma crise na Rússia levava esses capitais para um pouso mais seguro, os títulos do Tesouro americano. Isso gerava a desvalorização do real, o Banco Central tinha que aumentar juros e a dívida aumentava. Hoje, acontece o contrário. A crise vem via comércio, e não mais pelo mercado financeiro, porque somos superavitários. E as crises via comércio são mais lentas.

ISTOÉ – É o caso da atual crise americana?
José Márcio

Acho que a economia americana vai entrar em recessão, e será forte. O Brasil poderá pagar um pedaço dessa conta. Mas, ao contrário de outras crises externas que faziam o Brasil ter um crescimento negativo, dessa vez teremos apenas um crescimento menor. Em vez de crescer 5,3%, poderemos crescer 4,5%, por aí. E se a recessão americana for forte e longa vamos crescer 4% em 2009. Isso é quase o dobro do que se crescia nos melhores anos no passado.

ISTOÉ – O Lula teve a sorte de pegar uma situação internacional favorável até agora?
José Márcio

Não gosto de falar em sorte. Mas o crescimento da China foi ótimo para o Brasil. A China produz o que nós consumimos e consome o que nós produzimos. Como é um país muito grande, com mais de 1,5 bilhão de habitantes, quando cresce 10% ao ano, com toda essa população consumindo, o que produzimos aumenta de preço.

ISTOÉ – Não existe o inimigo chinês?
José Márcio

Existem alguns setores no Brasil que perderam para a China. Brinquedos, por exemplo. Mas, para o Brasil como um todo, o crescimento chinês foi sensacional. O papel da China foi o de aumentar, mundialmente, o preço das commodities que o Brasil vende. Isso fez com que o Brasil conseguisse gerar grandes superávits comerciais nos últimos anos.

ISTOÉ – Existe um momento para definir esse salto dado pelo Brasil?
José Márcio

Não. Política econômica não é um só momento. O segredo está na continuidade da responsabilidade fiscal, na estabilização e nos incentivos corretos.

ISTOÉ – O que são incentivos corretos?
José Márcio

O mercado de crédito. O crédito imobiliário está crescendo no Brasil por duas razões. Primeiro: a estabilidade econômica, que permite a concessão de créditos por até 20 anos sem perder dinheiro para a inflação. A segunda razão é a alienação fiduciária. Uma pequena reforma que mudou a forma de financiar a compra de imóveis. Antes, assinava-se uma escritura, o imóvel pertencia ao comprador e era dado como garantia ao banco. Mas a legislação dificultava que o cidadão fosse expulso de seu único imóvel. Assim, era muito difícil que o banco conseguisse retomar o patrimônio, caso não houvesse o pagamento. Agora não. O imóvel fica em poder do banco até que a dívida seja paga. Como se fosse um leasing. Os bancos, então, conseguem emprestar mais dinheiro. Isso é o que chamo de incentivo correto. São coisas assim, e a estabilidade, que diferenciam o Brasil de países como a Argentina, por exemplo. Hoje, o investidor estrangeiro olha o Brasil e tem certeza de que esse é um país que vai cumprir as regras do jogo. É um país sério.

ISTOÉ – Enquanto o mundo sofre uma crise imobiliária, o Brasil entra no melhor momento nesse setor. Há risco de vivermos no futuro o que está acontecendo lá fora?
José Márcio

No curto prazo não vejo riscos. O Brasil fez outra coisa que muita gente critica, mas que foi fundamental, que é o Proer. O País gastou parte de seu PIB para sanear o sistema bancário. Hoje, os bancos têm condições de emprestar dinheiro e não é tão simples para um banco arriscar mais do que ele pode. Estamos longe de qualquer problema como o que está ocorrendo nos Estados Unidos.

ISTOÉ – Qual a nova agenda?
José Márcio

Ela começa pela educação. A taxa de retorno no Brasil é altíssima. Não há nada que renda mais do que investir em educação. A cada ano adicional que o sujeito fica na escola, a renda aumenta 10%. No entanto, a demanda por educação no Brasil é muito pequena. Não vejo um candidato a presidente ter como plataforma melhorar a qualidade da educação.

ISTOÉ – O Bolsa Família é um começo?
José Márcio

A idéia do Bolsa Família é comprar o tempo da criança para que ela fique na escola. Nas famílias pobres, uma criança pode trazer até 30% do orçamento familiar, vendendo balas em semáforos, por exemplo. Então, entre deixar a criança na escola ou colocá-la para trabalhar, os pais preferem a segunda opção. O Bolsa Família paga o pai para deixar o filho na escola.

ISTOÉ – Não cria uma geração que deixa de trabalhar porque recebe mensalmente do governo?
José Márcio

Esses são os pais. A criança está na escola. Não interessa o que o pai faz com o dinheiro. A produtividade desse sujeito já é muito baixa. O que interessa é investir na criança. O Bolsa Família, a meu ver, é o melhor programa social que o País poderia ter.

ISTOÉ – É um programa eleitoreiro?
José Márcio

O sujeito que é contra ele não terá o voto daqueles que se beneficiam. Mas isso é normal. Qualquer programa de governo afeta as eleições. Ninguém nunca diz que as bolsas que a Capes dá para o cidadão fazer doutorado nos Estados Unidos são eleitoreiras ou assistencialistas.

ISTOÉ – O que vem depois do Bolsa Família?
José Márcio

Acho que agora é lutar por escola em tempo integral. Nenhum país conseguiu resolver seu problema de educação, de igualdade educacional sem haver tempo integral na escola pública.

ISTOÉ – Só na rede pública?
José Márcio

Lembro de uma conversa com o professor Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio, logo que o Brizola fez os Cieps. As pessoas diziam que os Cieps ofereciam educação em tempo integral e que isso era jogar dinheiro fora. Em um jantar com o Darcy, um pessoal do PMDB reclamou e o professor disse: “Quando seu filho chega da escola e não sabe fazer a lição, o que acontece?” O sujeito respondeu que a mulher o ajudava na tarefa. Então, Darcy concluiu: “Pois é, em família pobre, se o filho chega em casa e não sabe fazer a lição, ele não faz porque o pai também não sabe. Ou ele faz tudo na escola ou não vai fazer nada em casa. O filho do pobre precisa da escola em tempo integral para ter as mesmas oportunidades do filho do rico.”

ISTOÉ – Por que os Cieps não deram certo?
José Márcio

Os pais precisavam do filho trabalhando. Por isso o Bolsa Família acerta ao pagar para a criança ficar na escola. Mas os Cieps do Brizola foram os embriões do Bolsa Família.

ISTOÉ – O que falta para o Brasil acertar na educação?
José Márcio

O Brasil passou de 1940 a 1980 dando incentivo fiscal para empresário investir em capital físico. Depois, a partir de 1990, o País passou a gastar dinheiro com seus idosos. Hoje, o Brasil gasta 22 vezes mais per capita com aposentadoria e pensão do que com ensino fundamental. Ou seja, resolvemos gastar dinheiro com os idosos e nunca gastamos dinheiro com as crianças. É o único país que investe no passado. O resultado dessa equação é que 50% das crianças brasileiras vivem em famílias pobres e só 10% dos idosos vivem em famílias pobres. Ou seja, o brasileiro é pobre quando criança, segue pobre quando adulto e deixa de ser pobre a partir dos 60 anos.

ISTOÉ – A nova reforma tributária aumenta ou diminui impostos?
José Márcio

A reforma que está posta não tem a função de reduzir carga tributária, e sim de tornar o sistema mais eficiente. Mas temos uma carga muito elevada. O Brasil precisa reduzir alíquotas de impostos, e não desonerar setores específicos.

ISTOÉ – Mesmo sem a CPMF o Brasil tem batido recordes de arrecadação. Por quê?
José Márcio

Por causa das reformas. A lei das micro e pequenas empresas está trazendo um monte de gente para a formalidade. O mesmo acontece com o crédito consignado. Antes, o trabalhador não fazia questão de estar na formalidade. Agora não. Com um contracheque, ele faz o empréstimo para comprar o que pretende.

ISTOÉ – Os nomes cotados para a sucessão de Lula podem comprometer essa boa onda econômica?
José Márcio

Acho que está na hora de o Brasil mudar de tecla política. Os candidatos que tivemos até hoje são produtos do período ditatorial. As campanhas são muito calcadas nas disputas que vieram daquele período. Acho que José Serra é a última liderança política da velha guarda e ele não deveria se colocar como candidato. O Brasil precisa superar essa discussão. Está na hora de olhar mais para a frente. Precisa de outras idéias, que liderem uma nova agenda.

ISTOÉ – Não há o risco de um aventureiro levar a eleição?
José Márcio

Entramos em uma rota que é difícil mudar. Desses candidatos todos, o que mais se aproxima do que vivemos é o Aécio. Ele é novo porque não tem preconceito contra esse processo. Está disposto a aceitar o que outros aceitaram a contragosto.

ISTOÉ – O que, por exemplo?
José Márcio

 A privatização, por exemplo. A última campanha do Alckmin mostrou quanto o PSDB estava incomodado em defender a privatização. E o Lula continuou com ela. Isso é importante. O acordo com o FMI também foi a contragosto. Mas isso é um processo e quando se entra nele é difícil sair.

ISTOÉ – Nosso crescimento hoje é melhor do que no período do milagre econômico?
José Márcio

 É mais sólido, mais consistente.