O rapper conta como filmou o contundente documentário sobre os meninos do tráfico

Ao longo de oito anos, o rapper carioca MV Bill, 31 anos, e o dirigente da Central Única de Favelas Celso Athayde, 43, documentaram em vídeo o dia-a-dia dos jovens que vigiam o morro para os traficantes. Das 90 horas filmadas, resultou o filme Falcão – os meninos do tráfico. “O nosso objetivo é discutir essa questão de forma aberta, dando voz a todos. Ou fazemos isso ou não haverá futuro”, diz MV Bill. Ele recebeu ISTOÉ na favela da Cidade de Deus, onde mora, para falar sobre os bastidores da produção do documentário e a sua repercussão após ser exibido, numa edição compacta, pela Rede Globo. Com o documentário, MV Bill espera produzir “uma comoção que salve novos jovens do mesmo genocídio que está em curso nas comunidades pobres”. O genocídio é a guerra do tráfico, feita de batalhas travadas com a polícia e de confrontos entre as quadrilhas dos próprios traficantes.

MV Bill admite ter tratado com os chefes do tráfico por onde passou para conseguir filmar. “Sem isso, é impossível desenvolver qualquer projeto na favela”, diz ele. Para fazer Falcão – os meninos do tráfico, o rapper e Athayde se expuseram a riscos. E se emocionaram com as histórias e sonhos de seus personagens reais. Essas histórias estão no livro homônimo ao documentário que acaba de desembarcar nas livrarias (editora Objetiva). Apesar de serem oriundos do hip-hop, Bill e Athayde não pensaram duas vezes em fazer uma parceria com a Rede Globo, muitas vezes criticada pelo movimento. “A vida inteira brigamos por oportunidade e espaços dignos. Não ocupá-los é burrice”, diz o rapper. Um número impressionante confirma o quanto é urgente atacar o problema: dos 17 jovens ouvidos no documentário, somente um ainda está vivo.

ISTOÉ – Como foi circular pelo mundo do tráfico?
MV Bill

Não é que eu tenha conseguido entrar naquele mundo, eu pertenço àquele mundo. A relação com esses jovens não foi uma relação de repórter com entrevistado, mas uma troca de idéias.

ISTOÉ – Eles confiaram?
MV Bill

Eles se sentiram confiantes. Não houve câmera escondida, tive até dificuldade para cobrir os rostos das pessoas porque elas falaram abertamente. Em muitos casos, os jovens viravam os produtores do documentário, até prendendo o microfone de lapela em alguém. Em uma das entrevistas, o microfone de lapela está pendurado em um fuzil, um AK 47.

ISTOÉ – Alguém deu garantias de que nada aconteceria?
MV Bill

Não há segurança de nada. A minha única segurança é a confiança e a convicção de que estou fazendo a coisa certa, benéfica, que vai trazer ajuda para algumas pessoas. Não existe um seguro de vida. Só foi possível fazer isso graças à cumplicidade e ao entendimento daqueles jovens que acharam que esse documentário não é mais um trabalho sensacionalista.

ISTOÉ – Por que eles concordaram com a gravação?
MV Bill

Eles acreditaram que o documentário poderia mudar a vida de algumas pessoas. Eu não assumi essa ideologia há um ano, minha vida toda foi isso. Meus primeiros videoclipes, minhas primeiras aparições sempre foram relacionadas a esse assunto. É o caso de Soldado do morro (videoclipe de 1998 no qual Bill já mostrava os adolescentes que trabalham para o tráfico), que me rendeu um processo por apologia ao crime e ao qual eu ainda respondo.

ISTOÉ – Você teve que procurar os chefes do tráfico para viabilizar o trabalho?
MV Bill

Conversei com todos eles. Quando eu chegava na favela, todo mundo sabia que eu estava lá. Eu trabalho com projeto social, moro numa comunidade, é impossível fazer um trabalho desses em qualquer favela sem falar com o cara do tráfico. Isso não existe. Eu não vejo contradição nenhuma em falar com esses caras. Eu vivo essa realidade, nunca escondi de ninguém.

ISTOÉ – O que achou da repercussão do documentário exibido pela Rede Globo?
MV Bill

Muitas coisas me deixam confuso. Uma das pessoas que falaram logo após a exibição admitiu que desconhecia aquela realidade (refere-se ao autor de novelas Manoel Carlos). O documentário mostrou a distância que existe entre dois mundos. Às vezes não é uma distância geográfica, mas representada apenas por um muro, por uma cerca, por um circuito interno de tevê.

ISTOÉ – O cineasta Cacá Diegues também se manifestou.
MV Bill

O Cacá Diegues traduziu o meu sentimento ao dizer que “não é a favela que é o problema do Brasil, mas o Brasil é que é o problema da favela”.

ISTOÉ – Você passou por situação de risco?
MV Bill

Eu não quis privilegiar as imagens de mais violência, de mais tiro ou de mais ação. Tinha essas imagens, mas não era esse o meu foco. No livro, tive a oportunidade de detalhar, de dividir com o leitor o que sentia em cada local.

ISTOÉ – Como assim?
MV Bill

Teve um momento em que eu estava num prédio, numa comunidade da região Sudeste, um local conhecido como Predinho, que era o lugar onde as pessoas usavam drogas. Nesse lugar eu me dei mal, a polícia me deu cacetada na cabeça, cheguei a ficar com um corte. Na época, eu não tinha tanta visibilidade, não podia nem argumentar com os policiais. Tive que pegar minhas coisas e sair voando, como se fosse bandido também.

ISTOÉ – Algum outro contratempo desse tipo?
MV Bill

Tem um trecho do documentário em que o Celso conversa com uma senhora que está mostrando as fotos do filho. Naquele momento, eu estava do lado de fora levando porrada da polícia. Tudo porque eu estava com os meus produtores locais, e num documentário como esse os colaboradores não são pessoas normais.

ISTOÉ – Eram marginais?
MV Bill

Um respondia a processo por homicídio e outro respondia por assalto à mão armada. Eu estava na companhia deles quando os policiais chegaram. Resultado: fiquei 40 minutos de cara para a parede, levei chutes no tornozelo, os caras levaram meu dinheiro. Teve que vir um advogado e a polícia aceitou que ele pagasse pela nossa liberdade.

ISTOÉ – Quais os depoimentos que mais o emocionaram?
MV Bill

Aquele do garoto de dez anos que está dentro de um porão, por exemplo. A desesperança que aquele moleque passa é algo impressionante. Quando ele diz que, se morrer, vai descansar, eu acho aquilo chocante. Eu já ouvi coisas assim de pessoas de 90 anos, em fase terminal. Agora, um garoto de dez anos querer morrer porque está cansado da vida, isso é surpreendente.

ISTOÉ – Houve algum contraponto, alguma perspectiva positiva?
MV Bill

Uma coisa que me proporcionou felicidade foi o jovem que quer ser palhaço. Primeiro porque ele é o único sobrevivente entre todos os entrevistados. É contraditório, mas eu agradeço a Deus por ele estar preso. 

ISTOÉ – Por quê?
MV Bill

Foi a prisão que garantiu a vida dele. É uma pessoa que me contou a sua vida barra-pesada, disse que se der mole vai morrer, mas na hora de falar de um sonho me diz que sonha em ser palhaço. Eu pensei: o cara que hoje faz as pessoas chorar poderia estar fazendo as pessoas sorrir. Mesmo estando ali, não deixou de sonhar. 

ISTOÉ – Você o visitou na prisão?
MV Bill

Quando descobri que ele estava vivo e preso, fui até o presídio. No momento do reencontro eu estava muito nervoso. Tinha medo de encontrá-lo
e ele me dizer que não queria saber de mais nada, que o sonho de ser palhaço
tinha acabado. Mas, quando me disse que continuava sonhando em ser palhaço, aquilo me deu uma esperança, uma alegria. Pode ser um foco de luz dentro
desse túnel escuro.

ISTOÉ – Quais as suas sugestões para resolver esse grave problema?
MV Bill

Quando se começa a falar de humanização, acho um bom caminho. Essas pessoas normalmente não são tratadas como seres humanos. Muitas morrem e nem se transformam em estatísticas. Estive em Estados onde morriam três jovens em uma noite e nenhum jornal local noticiava. Com a repercussão do documentário, vi as pessoas falando que essa violência não se combate com mais violência, e sim com educação, saúde, cultura, lazer, oportunidade de trabalho.

 

ISTOÉ – Você então está feliz com o seu trabalho?
MV Bill

Parece que a ficha está caindo e parece que isso que a gente fez não vai entrar no esquecimento. Eu vou continuar contribuindo para que esse assunto não morra. Não adianta falar de cultura, educação, lazer, sem falar na renda. Sem isso, tudo vai pelo assistencialismo. Todos sabem que a má distribuição de renda é absurda. O Brasil tem que dividir a riqueza, senão vamos ter que dividir a pobreza e as consequências que ela traz.

ISTOÉ – É a única solução?
MV Bill

Sem isso, não vejo futuro. A não ser a reprodução do presente, que é continuar a enterrar os jovens mortos nessa guerra do tráfico, ver as meninas cada vez mais novas colocando cada vez mais crianças no mundo. É a reprodução da tragédia. Os jovens que aparecem no documentário não conheceram os pais. E eles, com 16, 17 anos, que é a idade-limite para eles morrerem, também já têm filhos. Vão deixar os filhos órfãos também.

ISTOÉ – O movimento hip-hop costuma criticar a grande mídia. Você foi criticado pela parceria com a Globo?
MV Bill

Se alguém criticou, não chegou a mim. Em nenhum momento pensei que foi uma rendição. Foi uma negociação, uma parceria. Nem pensei no hip- hop, porque essa questão vai além da ideologia. Eu quero é que se danem. Eu acho a programação da MTV muito ruim e o hip-hop está nela. 

ISTOÉ – Você apenas aproveitou um espaço, é isso?
MV Bill

É sempre o branco que nos representa, é sempre o pensamento deles, a gente não tem espaço para nada. Então, quando se tem um espaço não doado, mas conquistado, para falar o que se quer e o que se pensa, não posso ignorar, só porque parte do hip-hop não concorda. Quando as portas começam a se abrir, sem você se corromper, sem mudar o seu pensamento, não ocupar esse espaço é burrice.

ISTOÉ – O que acha de iniciativas como a emissora recém-criada pelo apresentador Netinho, exclusivamente voltada para negros?
MV Bill

Eu acho que seria sensacional uma emissora só dos negros, mas com muito poder. 

ISTOÉ – O ideal não seria integrar negros e brancos em vez de se fechar voluntariamente num gueto?
MV Bill

A integração não existe. Não tem espaço para o negro na tevê brasileira. As agências de modelo dizem: “Você é linda, mas não vende o produto.” Não há nenhuma televisão que me contemple.