i146502.jpg

Uma nova expressão surgiu no vocabulário dos economistas, banqueiros e autoridades dos 186 países que vieram a Istambul, na Turquia, para participar da reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. É o "consumidor de última instância". Esse espécime econômico foi representado nos últimos 20 anos pelos cidadãos americanos. Ávidos para comprar, eles se endividaram até o pescoço e sustentaram o crescimento em vários países, direta ou indiretamente. Mas isso acabou. A crise financeira transformou bons clientes em devedores inadimplentes. Para a grande maioria, o patrimônio não é suficiente para cobrir suas dívidas com os bancos e as empresas de cartão de crédito. "Metade dos americanos está tecnicamente falida, deve mais do que possui e vive apenas do salário", lamentou Tim Adams, ex- funcionário do Tesouro e atual diretorgeral do Lindsey Group, empresa de consultoria econômica. E quem vai substituí-los na arena do consumo global? A resposta vale alguns trilhões de dólares.

Quem pensa que os Estados Unidos podem recuperar o status anterior – a economia americana é extremamente flexível e costuma se adaptar rapidamente às mudanças tecnológicas e ao ambiente macroeconômico -, pode se preparar para uma longa espera. Na terra de Barack Obama, o cenário para os próximos anos é desanimador.

i146503.jpg

"Não vemos mais os Estados Unidos como o consumidor de última instância", afirmou David Robinson, diretor adjunto do Hemisfério Ocidental, área do FMI responsável pela América Latina e o Caribe. Pelas últimas projeções do FMI, o desemprego ainda deve subir mais nos próximos meses, atingindo 10% da força de trabalho. O PIB americano deve se contrair 2,7% em 2009 e crescer 1,5% em 2010, se os dados do relatório Perspectivas Econômicas Mundiais, divulgado na quinta-feira 1o, baterem com a realidade – o que nem sempre acontece.

Em agosto, houve a maior expansão no consumo no país dos últimos oito anos, 1,3%, mas a base de comparação é muito baixa.

Hoje, os melhores prognósticos são para China, Índia e Brasil. Não é difícil adivinhar, portanto, onde mora o consumidor do futuro. O economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn, vê os chineses, os indianos e os brasileiros como os legítimos sucessores dos americanos nas compras, apesar da notória diferença de renda per capita entre esses países. É uma questão de tempo. "A China é a candidata natural. A Índia também. O Brasil é grande, está crescendo muito e pode complementar essa demanda", afirmou Goldfajn.

São muitas as implicações dessa tendência. Estão em jogo milhões de novos empregos e bilhões de dólares em fluxo comercial e financeiro, com provável impacto (valorização) nas taxas de câmbio. Se os mercados comprarem a ideia, os três países receberão pesados investimentos nos próximos anos, já que o capital está sempre em busca de oportunidades e maiores lucros em regiões de alto crescimento. A julgar pelas remessas estrangeiras para a compra de ações na bolsa de valores e para financiar investimentos diretos das empresas, o movimento favorável já começou no Brasil. Não foi à toa que o Ibovespa, índice que mede os papéis mais negociados na BM&FBovespa, voltou aos níveis pré-crise e superou a barreira dos 60 mil pontos. Até o final do ano, o País deverá receber pelo menos US$ 25 bilhões (R$ 45 bilhões), inclusive para a aquisição de ações do Banco Santander Brasil e da Gol, entre outras companhias que buscam dinheiro para crescer. Nos últimos anos, a estabilidade econômica, com inflação baixa e juros em queda, e a forte migração social (mais de 20 milhões de pobres viraram classe média) fizeram do Brasil um dos principais destinos dos investimentos globais. Isso pode se acentuar se o País fornecer os consumidores de última instância que o mundo procura.

i146504.jpg

O PIB mundial deve cair 1,1% este ano e crescer 3,1% no próximo, segundo o FMI. A retomada ainda é frágil, alertou o diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn. "A boa notícia é que a recuperação realmente começou. Não significa – e quero deixar isso bem claro – que a crise acabou", afirmou o francês na manhã da quinta-feira 1º, a estudantes de uma universidade turca. Um deles tentou acertar um tênis Nike no dirigente do FMI, mas errou o alvo. O gesto, que repete a sapatada de um jornalista iraquiano no então presidente americano George W. Bush, é simbólico dos novos tempos. A Nike é uma das companhias globais dos Estados Unidos que mais investem na produção externa de seus produtos, principalmente na América Latina e na Ásia, os novos motores da economia internacional. Na corrida pelo crescimento, nos próximos quilômetros os Estados Unidos e a Europa ficarão para trás dos países emergentes. Enquanto o PIB dos países desenvolvidos deve cair 3,4% em 2009, o dos emergentes crescerá 1,7%.

Para 2010, as previsões do FMI são de 1,3% de crescimento das economias mais ricas e de 5,1% das emergentes – isso, se não for maior, dado que a taxa referente ao Brasil, de 3,5% no ano que vem, está subestimada. Para a China, a expectativa dos economistas do fundo é de uma alta de 9% do PIB e, para a Índia, de 6,4% em 2010. Como o Brasil aumentou suas exportações para o maior gigante asiático, tende a fortalecer duplamente sua posição como fornecedor do consumidor de última instância. "Temos exatamente o que o mundo procura", afirma Goldfajn.

i146505.jpg

Mercados internos cada vez mais pujantes devem ajudar os chamados BICs (os BRICs caíram em desuso com os problemas da Rússia) a depender menos do que acontece nos países desenvolvidos nos próximos anos. Mas não totalmente. Segundo as previsões, as taxas de juros devem voltar a subir, acompanhando a necessidade de financiamento público, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. Cedo ou tarde todos pagarão mais caro pelo capital do que hoje. Enquanto isso, os países emergentes aproveitam para ampliar seu espaço nos fóruns internacionais. No FMI, os emergentes devem aumentar suas cotas de 40% para 45%, o que amplia o poder de voto na organização. Essa mudança deve ocorrer em 2011 e teve o aval do encontro de cúpula do Grupo dos Vinte (G-20), em Pittsburgh, no final de setembro, uma semana antes da reunião em Istambul. China, Índia e Brasil devem ser beneficiados com a decisão. Ninguém pode dizer com segurança absoluta qual será a profundidade dessa transformação econômica e seus impactos políticos no longo prazo. O século XXI, como bem sabe a milenar Istambul, está apenas começando.