Uma velha máxima garante que a história é quase sempre contada pelos vencedores. No Brasil, contudo, pelo menos um episódio desmente tal sentença. Trata-se da Guerrilha do Araguaia (1972-1974), em que as Forças Armadas dizimaram quase uma centena de guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que pretendiam desencadear uma revolução a partir dos confins da Amazônia. Ao longo de 30 anos, os vencidos já contaram suas versões em prosa e verso, mas os vencedores – os militares representando o Estado brasileiro – insistem em manter a lei do silêncio que se impuseram na época. Por razões até agora obscuras, as Forças Armadas, num primeiro momento, negaram a própria existência da guerrilha; posteriormente destruíram boa parte dos documentos relacionados ao conflito. O livro A lei da selva – estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia (Geração Editorial, 384 págs., a ser lançado em 11 de março), do jornalista Hugo Studart, chefe da sucursal de Brasília de ISTOÉ Dinheiro, é o primeiro a jogar luzes sobre esse episódio tenebroso a partir do ponto de vista dos militares. Talvez a revelação mais impactante seja a de que a ordem para não fazer prisioneiros no Araguaia partiu do próprio general-presidente Emílio Garrastazu Médici, em 1973.

Além de depoimentos orais de militares envolvidos na repressão à guerrilha – a maioria preferiu o anonimato –, Studart baseou-se num relatório concluído em
2001 por alguns desses oficiais, denominado Dossiê Araguaia. Entre outras coisas, esse documento refaz a contabilidade das vítimas: enquanto o PCdoB diz que morreram 75 pessoas no Araguaia – 58 guerrilheiros e 17 camponeses –, os militares admitem que houve 85 mortos, embora não informem quem, quando
e como. Destes, a maioria sucumbiu na última fase da operação militar,
denominada Marajoara.

É justamente sobre esta operação que o livro de Studart traz mais revelações. Como relata o autor, “dentre os presos do Araguaia, da Primeira Campanha todos saíram com vida. Na Segunda, não se chegou a fazer prisioneiros – mas tecnicamente morreram todos em combates na mata. Da Terceira Campanha (a Marajoara), nenhum prisioneiro retornou com vida”. Isso foi decorrente da completa mudança de estratégia dos militares depois do fracasso das duas primeiras campanhas. As tropas regulares foram afastadas e substituídas pelos serviços secretos militares, que recrutaram mateiros e entraram na floresta em trajes civis, nomes falsos, combatendo os guerrilheiros com as mesmas táticas revolucionárias destes. “Suplantaram as leis da guerra, implantaram a lei da selva. Terminaram com o coração nas trevas, violando os direitos humanos”, diz Studart.

O livro também esclarece que a “guerra suja” no Araguaia não foi um acidente de percurso, mas uma política de Estado. Depois da Operação Sucuri, que mapeou nomes e localizações de todos os guerrilheiros, o general Milton Tavares, comandante do Centro de Informações do Exército (CIE), levou ao general Orlando Geisel – irmão do futuro presidente e então ministro do Exército – um relatório da situação, apresentando duas alternativas: prender os guerrilheiros e levá-los a Brasília ou “neutralizar a história da guerrilha por lá”. Depois de consultar Médici, Geisel deu a ordem: “Não sai ninguém da área.”

E por que, afinal, os vencedores esconderam a história? Segundo um dos oficiais ouvidos por Studart, Ernesto Geisel, que sucedeu Médici na Presidência em 1974, tinha o temor de que a Albânia ou a China iniciassem um movimento dentro do bloco comunista para reconhecer a região do Araguaia como “zona liberada” dentro do território brasileiro. Assim, o melhor para o regime era fazer de conta que a guerrilha não existia, enquanto se exterminavam seus últimos sobreviventes. “O livro lança luz sobre determinados episódios ainda obscuros. Não concordo com determinadas passagens, mas o considero um dos mais importantes já escritos sobre o assunto”, disse a ISTOÉ o coronel da reserva Lício Maciel, que participou dos combates, foi gravemente ferido e um dos poucos a revelar o nome verdadeiro. “Espero que o livro contribua para trazer a público a verdade do que aconteceu naquela época. Nem sabemos se os documentos foram realmente queimados. O grande problema é o sigilo que até hoje se faz em relação à Guerrilha no Araguaia”, diz a ex-guerrilheira Criméia Almeida.