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Tiros na noite
O ator Lee Thalor (de touca) no papel de um preso que recebe indulto no Dia das M ães, quando se deram os confrontos entre bandidos e policiais em São Paulo

Cinco minutos podem mudar para sempre a vida de uma pessoa. Essa frase é dita no filme "Salve Geral", que estreia na sexta-feira 2, pelo personagem Rafa, interpretado pelo ator Lee Thalor. Ele é um rapaz de classe média que idolatra Ayrton Senna. Ao participar de um "pega" na periferia onde mora, entra em "desacerto" com um bando de marginais, vê um amigo ser alvejado e, naqueles cinco minutos que mudam para sempre a vida de uma pessoa, apanha uma arma e mata por acidente uma garota. Instantes depois, ele aparece dividindo uma cela superlotada, condenado a oito anos de prisão. Seria uma sentença normal se, naquele momento, a população carcerária paulista não estivesse se organizando em torno de uma facção criminosa – o Primeiro Comando da Capital (PCC), chamado no filme de Partido – de fato chegou a ter esse nome, Partido da Comunidade Carcerária, quando pleiteou na Justiça o direito de concorrer em eleições legislativas. Uma vida não muda sem mudar as outras vidas ao seu redor. E o tiro insensato de Rafa vira de ponta-cabeça a existência de sua mãe, a professora de piano Lúcia, interpretada com garra por Andréa Beltrão. Viúva e desempregada, ela leva o amor materno às últimas consequências para proteger o filho do inferno em que ele se meteu: passa a colaborar com o PCC, a facção que no Dia das Mães de 2006 acuou e aterrorizou a cidade de São Paulo. A trajetória dessa família implodida por uma realidade violenta desenha a trama mais vibrante do recente cinema brasileiro.

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VIOLÊNCIA Andréa Beltrão, a mãe de Rafa: amor pelo filho levado às últimas consequências

O empenho do cineasta carioca Sergio Rezende em contar essa história já deu os primeiros resultados. Na sexta-feira 18, "Salve Geral" foi escolhido para concorrer a uma vaga no Oscar 2010 e poucas vezes o País vai estar tão bem representado. No ano passado, um dos fortes concorrentes ao melhor filme em língua estrangeira era "Gomorra", sobre a máfia napolitana, com o qual o filme de Rezende guarda semelhanças. "Salve Geral", que encara problemas não menos urgentes que os tratados pelo filme italiano, dá de dez a zero: ele salta do drama social para o particular e vice-versa com uma precisão de arrepiar. Existem diversas portas para se entrar nessa tragédia urbana e todas elas levam a uma faceta da realidade muito bem retratada. Aparece primeiro essa mulher que, diante da notícia de que o filho foi preso, pergunta a um agente do presídio: "Ele pode dormir em casa essa noite?"

Preocupada em amenizar a pena do rapaz, Lúcia aprende com uma advogada de porta de cadeia, apelidada de Ruiva (Denise WeinWeinberg), que é melhor comprar um péssimo juiz do que contratar um ótimo advogado. Ou então, despir-se da moral e jogar do lado de quem manda lá dentro.

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O encontro das duas, durante uma rebelião no presídio, sela a ponte entre o mundo das "pessoas comuns" e o mundo do crime. Sem dinheiro, Lúcia passa a fazer pequenos serviços para a facção – mensagens cifradas, entrega de celulares, etc. – e quando menos espera se envolve até com um dos líderes criminosos. Entrecortado por tomadas aéreas de São Paulo, o filme vai desenhando esse imenso tabuleiro – a facção se organizando, o poder público perdendo aos poucos o controle da situação, até que a bomba-relógio explode. E, no meio desse caos, uma família tentando se manter inteira. Rezende diz que o tema secreto do filme é justamente a perda de controle. "Aqueles ataques representaram um momento de descontrole agudo da vida social. O Estado acreditava que tinha os presídios nas mãos; a polícia achava que dominava as ruas. Mas, de repente, as coisas saíram de esquadro. Deu-se uma explosão." O cineasta esclarece, contudo, que não quis fazer um documentário nem tampouco clonar a realidade.

Rezende arquitetou esse enredo a partir do que leu em revistas e jornais. Entrevistou também policiais e promotores, mas nega que teve acesso a documentos ou relatórios da Justiça. Lembrando que fez uma ficção, desencoraja o espectador a identificar pessoas reais no filme. O detento Marcos Camacho, o Marcola, suposto líder do PCC, parece ter sido desdobrado em dois personagens – Chico, vivido por Eucir de Souza, e Professor, interpretado por Bruno Perillo: "É uma visão ingênua imaginar que, numa situação em que 73 presídios se rebelaram, aquilo tudo tenha sido obra de uma única pessoa." Para dar mais credibilidade a tipos tão facilmente estereotipados pelas tramas policiais, o diretor selecionou atores de teatro de São Paulo – evitou assim o risco de alguns deles serem facilmente rotulados como mocinho ou vilão. São, ao todo, 67 personagens com fala, grande parte deles muito bem desenhada – com exceção, talvez, do secretário de segurança, de perfil um pouco raso, e de outros que não chegam a incomodar diante do encadeamento vertiginoso da história.

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O 11 de setembro brasileiro

ISTOÉ – Por que o sr. decidiu fazer "Salve Geral"?
Sergio Rezende – Aqueles ataques tiveram um impacto simbólico semelhante ao 11 de setembro: todo mundo se lembra onde estava naquele dia. A decisão mesmo aconteceu na hora da pesquisa, quando descobri a real participação das mulheres naquele episódio.

ISTOÉ – Como se deu essa participação?
Rezende – A imagem folclórica que se tem da mulher de um presidiário é a da amante, uma figura meramente decorativa. Percebi que ela teve uma participação ativa e que esse era um personagem inédito na dramaturgia brasileira. Coloquei em cena essas duas figuras: a mulher que não pertence a esse mundo e que cai num furacão e a advogada que advoga para o crime.

ISTOÉ – O sr. tem sido acusado de defender os criminosos.
Rezende – Essa visão é totalmente superficial. Aqueles caras estão comendo uns aos outros. Reconheço apenas que eles têm força e poder. Isso não quer dizer que os esteja defendendo.

ISTOÉ – O filme deixa claro que houve uma negociação entre o governo e o PCC e que houve uma retaliação da polícia.
Rezende – Isso são fatos. O governo estava presente? Claro. Pessoas foram executadas? Claro. Mostrei os fatos, não me interessa fazer denúncias. Não dá para fazer filme com RG ou CPF de ninguém. Tem que amalgamar, fundir personagens. Embaralhei mesmo. Não adianta procurar o Marcola ou o secretário de Segurança Saulo de Castro.

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