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Em 1997, a Unesco reuniu cientistas, políticos e estudiosos em Utrecht, na Holanda, para discutir como lidar com a violência entre crianças, adolescentes e jovens em escolas européias. Um dos primeiros problemas do grupo foi chegar a um acordo sobre o que identifica alguém violento. Termos como “comportamento indesejável” ou “anti-social” e atitudes “politicamente incorretas” apareceram para descrever jovens “normais” e sem aparentes tendências à delinqüência, mas que, um dia, fizeram algo gravíssimo. Dez anos depois, essas questões permanecem desafiando pais, escolas e governos. O que leva jovens com família, dinheiro e acesso à boa educação a se comportarem como bárbaros sem motivo aparente? Este é o debate no qual o Brasil se envolve após tomar conhecimento de que um grupo de garotos da classe média alta carioca espancou covardemente uma empregada doméstica que estava sozinha em um ponto de ônibus, na madrugada do domingo 24. Até então, eles eram considerados “mimados”, “arrogantes”, segundo vizinhos e colegas de faculdade que não quiseram se identificar. Agora são criminosos.

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"TALVEZ TENHA FALTADO CARINHO, ACOMPANHAMENTO. HOJE, NA CLASSE ALTA, OS FILHOS TÊM BABÁ, MOTORISTA. FALTA CONVIVER, BATER UM PAPO"
Renato Moreira Carvalho, pai de Sirley

A vítima é Sirley Dias de Carvalho, 32 anos. Seus agressores são os estudantes Rubens Pereira Arruda Bruno, 19 anos, de direito; Felippe de Macedo Nery Neto, 20, de administração; Júlio Junqueira Ferreira, 21, de gastronomia; Rodrigo dos Santos Bassalo da Silva, 21, de turismo, além de Leonardo Andrade, 19, técnico em informática. O sexto integrante, Arthur Campos da Paz, não participou da pancadaria e, por isso, não chegou a ser indiciado. Apenas por diversão, o bando parou o carro no ponto de ônibus em que Sirley estava, na Barra da Tijuca, zona no

bre do Rio, e passou a chutá-la, xingála e socá-la. Exceto Leonardo, que, segundo ela, “ficou ao lado, de pé, dando gargalhadas”. O brutal episódio não foi um ato isolado a flagrar a fragilidade moral de nossos jovens recentemente. Na semana passada, duas estudantes de direito, ambas de 21 anos, roubaram quase R$ 1 mil em lingerie numa loja também da Barra da Tijuca. De classe média, Ana Paula Couto Andrade e Aline Ferreira Rique poderiam pagar pela mercadoria.

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Mas, ao tirar o alarme das peças e escondê- las nas bolsas, só pensaram em levar vantagem. Por força de liminar, irão responder em liberdade pelo delito. Em março passado, Ana Paula Sousa, outra estudante de direito, foi presa em Campinas (SP) por liderar um bando de assaltantes com o namorado e aguarda julgamento.

No Paraná, na terça-feira 26, a polícia prendeu uma suposta quadrilha de jovens hackers que teria roubado mais de R$ 3 milhões de contas alheias. São 33 garotos bem-nascidos que assaltavam para “sustentar o luxo, a extravagância e prazeres sexuais”, como disse o secretário de Segurança Pública do Estado, Luiz Fernando Deçazari. “Em alguns dos casos, o rapaz depositava o dinheiro do roubo nas contas dos próprios pais. Será que esse pai nunca perguntou para o filho de onde vinha o dinheiro?”, questiona. Em 2005, o secretário coordenou ação contra jovens de classe média skinheads, em Curitiba. Eles pregavam cartazes com a suástica nazista e mensagens de repúdio a negros, homossexuais e judeus. O grupo era liderado pelo professor de jiu-jítsu Eduardo Toniolo Del Segu, 25 anos.

R$3 milhões foram roubados por uma quadrilha de jovens hackers presa no Paraná esta semana

Para a psicóloga especializada em família Maria Tereza Maldonado, há várias explicações para esses fatos. Entre elas, a cultura da violência que se fortalece com a certeza da impunidade e a fatídica associação entre identidade masculina e agressividade. “A maior parte de agressores é homem. Associase o macho ao ‘galo de briga’. É uma deformação da nossa cultura que leva a esses equívocos”, diz. A autora de Cá entre nós na intimidade das famílias diria aos pais que não assumam toda a culpa sozinhos. “A família é influência importante, mas o grupo de amigos também é forte.” Ela alerta, entretanto, que os pais erram quando “passam a mão na cabeça” dos filhos e repetem desculpas esfarrapadas como “ele é assim mesmo” para justificar arroubos.

 

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“Esses caras (os jovens que espancaram a empregada) partem para o enfrentamento por qualquer coisa”, disse um vizinho. “A postura deles, em grupo, é de arrogância”, afirmou um professor de dois dos garotos. Ninguém quer ser identificado e a explicação é a mesma: medo. O sociólogo Antônio Testa, pesquisador da UnB na área de juventude e violência, diz que “entre as raízes deste tipo de comportamento desviante está a fragilidade da família e a diluição da autoridade paterna”. Testa aponta ainda uma faceta específica desta geração:

“A banalização da vida do outro é uma característica que aparece nos anos 90. É uma juventude que não tem responsabilidade com o futuro.”

Logo eles, que podem vislumbrar melhores perspectivas porque têm todas as oportunidades. O pai de Leonardo Andrade, o empresário do setor de informática Carlos Sérgio Medeiros de Andrade, 46 anos, atribui à educação dada ao filho em casa o fato de ele não ter participado da agressão, embora estivesse com o grupo. Leo é técnico em informática e trabalha na empresa paterna entre 13h e 22h. Ocupa um dos quatro quartos no apartamento da família, tem liberdade para ir e vir e dinheiro. Tornou-se pai aos 16 anos e, desde então, evitava sair à noite a cada 15 dias para se dedicar ao filho. Seria um garoto exemplar se a polícia não tivesse mandado acordá-lo às 6h45 do domingo 24 para algemá-lo e dar início a um pesadelo familiar.

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Já o pai de Rubens, o microempresário Ludovico Bruno, fez declarações desastrosas: “Mulher fica roxa com apenas uma encostada” e “crianças que não deveriam ir para a prisão”, referindo-se aos agressores. Na quarta-feira 27, reconheceu a derrota: “Nossa família toda está num hospital. Não conseguimos dormir, comer. Tenho dois sentimentos: olho meu filho e choro de pena ou de raiva. Os dois são ruins.” Para a juíza aposentada e ex-deputada Denise Frossard, os jovens delinqüentes e bem-nascidos seguem uma conhecida matemática: “É a relação custo/benefício que define a oportunidade tanto do negócio quanto do crime. Esses garotos e garotas concluem que, no Brasil, o crime tem sido um ótimo negócio.”

 

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Punição branda por incendiarem índio

 

 

Oassassinato do índio pataxó Galdino José dos Santos foi um dos crimes cometidos por jovens de classe média que mais chocaram o Brasil. Em 1997, cinco rapazes de Brasília tocaram fogo no índio que dormia num ponto de ônibus. “A gente só queria dar um susto em um mendigo, não sabíamos que era índio”, disse na época Antônio Novely Vilanova, filho de um juiz. Foi preso com os amigos Max Rogério Alves, Eron Chaves de Oliveria, Tomás de Oliveira e Gutemberg Oliveira de Almeida por incendiar o pataxó. Galdino teve 95% do corpo queimado e morreu. “Eles nunca ficaram em celas enquanto esperavam o julgamento”, diz a promotora Maria José Miranda. Segundo ela, ocupavam a biblioteca da penitenciária, tinham banho quente e computador, entre outros privilégios.

Os rapazes foram julgados e condenados a 14 anos de prisão em 2001 e deveriam ter permanecido pelo menos nove anos em regime fechado. Não foi o que aconteceu. Em 2003, Antônio Novely e Max Rogério, enteado de um ex-ministro do TSE, foram flagrados tomando cerveja num bar. Em 2004, estavam todos soltos. Para sair da cadeia, disseram que queriam trabalhar e estudar. “Nenhum estudava antes de ser preso”, diz o promotor Maurício Miranda. “O rico, depois que entra na cadeia, vai para a faculdade para se beneficiar com o ‘saidão’”. Hoje, levam uma vida discreta. Tomás trabalha numa associação de médicos. Gutemberg, que na época do crime era menor, foi para Recife, onde atendia pacientes queimados, mas retornou para Brasília. E Max trabalha com o padrasto no escritório.

 

 

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