Que as mulheres mudaram radicalmente em menos de meio século é uma constatação óbvia. Reforçada pela edição simultânea de três títulos diversos, que mostram como o papel, a imagem pública e a visão que têm de si mesmas sofreram tamanha evolução. Bubble gum (Intrínseca, 272 págs., R$ 37), o segundo livro da francezinha Lolita Pille, autora de Hell Paris 75016 (Intrínseca, 205 págs., R$ 34), escrito em 2000, quando tinha 18 anos, traz o estereótipo da “resolvida” dos dias de hoje, a mulher independente, bonita, gostosa, do tipo que troca de parceiro como quem troca de emprego – outra conquista –, mas que está sempre só. Confissões de uma groupie – I’m with the band (Barracuda, 272 págs., R$ 38), reúne as impressões da americana Pamela Des Barres, uma das primeiras e mais conhecidas groupies, apelido dado nos anos 1960 às garotas que levavam para a cama tudo o que viam no palco. Pamela teve casos, por exemplo, com Jim Morrison (Doors), Mick Jagger (Rolling Stones), Jimmy Page (Led Zeppelin), Keith Moon (Who) e Noel Redding (The Jimi Hendrix Experience), proeza de dar inveja em meninas aventureiras. E meninos. O terceiro título, que apesar de formal contém revelações incríveis, é A Ms. Magazine e a promessa do feminismo popular (Barracuda, 288 págs., R$ 37), da pesquisadora acadêmica Amy Erdman Farrell, trazendo a história da citada revista feminista fundada por Gloria Steinem em 1972.
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Revolução: Amy conta a história da Ms. Magazine e suas conquistas irreversíveis

A Ms. modificaria para sempre o tratamento dado às publicações voltadas para as mulheres pelo mercado editorial e, principalmente, publicitário. O avanço que provocou foi imenso, tornando fácil hoje em dia estabelecer uma ponte entre o livro de Pamela, baseado em seu diário e lançado em 1987, e os dois de Lolita, ficções vagamente auto-biográficas. Apesar de californiana, Pamela Anne Miller, seu nome de solteira, era uma típica caipira do Kentucky, de onde vieram seus pais. Nascida em 1948, tinha 16 anos quando foi exposta aos Beatles e, literalmente, aos Rolling Stones, que, de passagem por Los Angeles, recebiam garotinhas em seus quartos. No ambiente para lá de boêmio a que a Costa Oeste foi submetida, gerando, entre outras modas, o movimento hippie, todas as experiências eram válidas e inéditas em termos de escala. Das drogas ao amor livre, das comunidades à vida alternativa. Naturalmente tudo ficava mais fácil se a garota vivia dependurada em um astro do rock.

Fruto de outros tempos, Manon D., a heroína criada por Lolita, nasce no interior da França e se torna uma estrela logo depois de mudar-se para Paris. Mas a sua explosão se dá em outro mundo, em tudo e por tudo diferente do conhecido por Pamela. Trata-se de um mundo globalizado, em que a identidade se resume à obtenção de um ingresso VIP e onde os verdadeiros VIPs nem sequer precisam de ingresso. Ou dinheiro no bolso. Tudo é imagem. Um mundo fashion, uma sociedade nômade, munida de cartões, carrões, helicópteros, onde tudo é exorbitante – as drogas, as mulheres, o sucesso, as fortunas de origem nebulosa. Pamela se envolvia com nomes, Manon com grifes. A primeira foi uma desbravadora das novas ondas que iam surgindo; a outra no máximo surfa em um tsunami global. Mas essa diferença não surgiu da noite para o dia, muito menos surgiu espontaneamente.

Quando Gloria Steinem, Forsling Harris e Patricia Carbine fundaram a revista Ms., abreviatura que não designa o estado civil da mulher – ao contrário de Miss, referente a senhorita (solteira), e Mistress ou Mrs., a senhora (casada) –, o movimento feminista, como se tornaria conhecido, já existia há mais de uma década. Em 1960, o presidente John Kennedy criou o Gabinete da Mulher, dando origem ao Comitê Presidencial pelos Direitos da Mulher, que se encarregaria de extinguir a discriminação sexual nos empregos públicos e promover a equiparação salarial para funções iguais – e é bom lembrar que a pílula anticoncepcional também apareceu nesse período. Em todo o globo surgiam movimentações organizadas, de baixo para cima, forçando mudanças que se mostraram irreversíveis.
   

Dessa forma, de batalha em batalha, as mulheres entraram na década de 1970 com os sutiãs chamuscados, mas de cabeça erguida. Não fosse um pequeno detalhe. A grande imprensa era eminentemente masculina, a começar pelas publicações “femininas” – tanto as moderninhas, como Cosmopolitan e McCall’s, quanto as tradicionais, como Good Housekeeping (“boa dona-de-casa”) e Ladies’ Home Journal (“jornal caseiro das senhoras”). A gota d’água foi a invasão e tomada deste último por 200 funcionárias cujas exigências iam da criação de creches e aumentos salariais à formação de uma equipe editorial exclusivamente feminina. As publicações feministas clandestinas, underground e amadoras estavam com seus dias contados. Não é à toa que Ms. era vista “como uma caranguejeira em um cacho de bananas”.

Amy Farrell narra mês a mês, ano a ano, número a número, a luta para conseguir patrocínio, publicidade e veiculação, e, mais, a coragem para influir no conteúdo editorial, o que forjou novos comportamentos de ambos os lados do balcão. Como se não bastasse, ao mesmo tempo que a revista era feita exclusivamente por mulheres, toda uma nova mentalidade baseada em cooperativismo, oportunidades, lucros e responsabilidades compartilhadas teve de ser implementada na redação, pensamento reforçado através da participação direta e irrestrita das leitoras que influíam e avaliavam os resultados editoriais. Naturalmente, vários setores feministas eram contrários ao que chamavam de adesão do movimento ao establishment e, com o tempo, as outras publicações seguiram pelo mesmo caminho, a reboque da sociedade, diluindo o impacto inicial de Ms.

Em 1989, depois de ter seu controle acionário transferido para uma fundação, a revista deixou de ser comercializada. Mas até os dias de hoje o impacto de Ms., uma publicação que se propôs a ser “um fórum aberto, um lugar onde mulheres de diferentes origens poderiam encontrar ajuda e informação para melhorar suas vidas”, é sentido em todos os setores da vida em sociedade. Até mesmo ao dar voz a groupies como Pamela, inegavelmente uma pioneira, ou permitir que “patricinhas” como Lolita levem a vida que levam. Graças à sua impertinência, as duas podem sair por aí contando suas experiências, sem o perigo de serem queimadas vivas.