Dessa vez pareceu que iria ser para valer. Num momento bastante delicado, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha foi submetido na quarta-feira 5 ao julgamento do plenário, depois de ter admitido o saque, feito por sua mulher, Márcia, de R$ 50 mil do valerioduto. Uma semana antes da votação, a relação entre a opinião pública e o Congresso chegara ao seu ponto mais baixo a partir da dança comemorativa da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) pela absolvição do colega João Magno (PT-MG). Diante da onda de indignação nacional, dava-se como certo, até para resgatar o moral da Câmara, que o ex-presidente da Casa, espécie de príncipe dos mensaleiros, seria cassado. O que se viu foi uma prova de que sempre se pode descer mais um degrau. Ele não apenas foi inocentado, como o veredicto se deu por larga margem de votos. O plenário estava cheio, com 484 deputados presentes. Eram necessários no mínimo 257 votos para sua cassação, mas só 209 deputados votaram pela perda de mandato. Somados os votos contra a cassação, as abstenções, os votos nulos e em branco, nada menos que 275 deputados protegidos pelo voto secreto fecharam com o colega mensaleiro. Não pareceu indecoroso, aético e ilegal a eles tanto o saque de Márcia como o fato de João Paulo haver pago, com dinheiro da Câmara, uma pesquisa de opinião que aferiu a sua própria popularidade nos tempos em que ocupava a cadeira mais alta da Casa. Valeram, naquela hora, seus muitos e bons amigos. Quando se elegeu presidente da Câmara, em janeiro de 2002, sua primeira medida foi aumentar o número de assessores de cada gabinete e, de quebra, conceder um aumento de salário aos parlamentares e ao corpo funcional.

“A absolvição foi resultado de um acordão entre PL, PT, PP e metade do PMDB”, acusou o presidente do Conselho de Ética, Ricardo Izar (SP). Como vago sinal de que ainda há um nicho de indignação no Congresso, uma onda de renúncias se deu na comissão. O certo é que João Paulo operou dia e noite, nos últimos meses, para salvar a própria pele. Apenas nas últimas duas semanas, ele falou pessoalmente ou por telefone com 495 dos 513 deputados da Câmara. Só deixou de fora do corpo a corpo os inimigos figadais. Para explicar sua defesa, promoveu pelo menos quatro jantares em seu apartamento em Brasília ou na casa de colegas aliados. E mandou uma carta de cinco páginas, em tom humilde, a cada um dos colegas da Câmara. O texto da carta foi padrão, mas os nomes dos destinatários e a assinatura do remetente foram preenchidos um a um, de próprio punho, pelo deputado. Logo no início, pediu “desculpas” por “tomar parte do tempo” de seus colegas. Citando à larga o filósofo espanhol Ortega y Gasset – “o homem é o homem e suas circunstâncias”, “a circunstância e o homem formam e integram a vida” e “viver é viver em alguma circunstância” –, ele jurou não saber que vinham de fontes irregulares os R$ 50 mil sacados por sua mulher. Também empenhou a palavra para garantir que o contrato de publicidade firmado pela presidência da Câmara era absolutamente normal. Despediu-se com um cândido “fraternalmente”.

Ele contou, ainda, com a ajuda decisiva de uma série de colegas que, por amizade, interesse ou em nome de trocas de favores herdadas dos tempos de presidência da Câmara, se empenharam na absolvição do colega. Fazem parte desta lista os deputados José Múcio (PTB-PE), Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), Renato Casagrande (PSB-ES) e Mussa Demes (PFL-PI). Eles ajudaram na organização dos jantares. Os colegas petistas Virgilio Guimarães, Luiz Eduardo Greenhalg e Professor Luizinho reforçaram o corpo a corpo, junto com aliados como o ex-ministro da Ciência e Tecnologia e presidente do PSB Eduardo Campos (PE) e o deputado Renildo Calheiros (PCdoB-AL). O irmão de Renildo, o poderoso senador Renan Calheiros (PMDB), a despeito das brigas que teve com João Paulo por conta da reeleição, ajudou dentro do PMDB. Para finalizar, uma mãozinha providencial veio de duas figuras do baixo clero: o ex-presidente da Câmara e ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), que, mesmo cassado, disparou telefonemas para dezenas de ex-colegas, e o atual corregedor da Câmara, Ciro Nogueira (PP-PI). Com tantos apoios, venceu – e ampliou a distância entre o que quer a sociedade e o que faz a Câmara.